Soraya Misleh, de São Paulo

Nós, palestinos abaixo-assinados, escrevemos para afirmar nosso compromisso com a amplificação das vozes sírias, à medida que sofrem massacre e deslocamento nas mãos do regime de Bashar al-Assad. Estamos motivados pela nossa crença profunda de que a opressão, em todas as suas manifestações, deve ser a principal preocupação de qualquer pessoa comprometida com nossa libertação coletiva. Nossa visão da libertação inclui a emancipação de todos os povos oprimidos, independentemente de suas lutas se encaixarem perfeitamente em estruturas geopolíticas ultrapassadas. Estamos preocupados com alguns dos discursos que surgiram a partir de círculos progressistas a respeito da crise em curso na Síria. Em particular, estamos envergonhados pela maneira como alguns indivíduos conhecidos por seu trabalho na Palestina têm falhado em sua análise sobre o que acontece na Síria.” Assinado por centenas de palestinos, o manifesto intitulado “Sobre os aliados de que não nos orgulhamos: uma resposta palestina ao problemático discurso sobre Síria” (disponível em https://goo.gl/vMkCSL) reflete o princípio da causa palestina – símbolo e síntese de todas as lutas contra a opressão e pela libertação dos povos no mundo.

Somamo-nos e fazemos coro a essas vozes, que não são isoladas: pesquisa realizada pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research (PSR) junto aos palestinos que vivem nos territórios ocupados de Gaza e Cisjordânia entre 2 e 4 de junho de 2016 aponta que a maioria da população apoia a revolução síria: 40% se posicionaram a favor do Exército Sírio Livre, ante 18% pró-Bashar e apenas 5% pró-grupos extremistas, como o autodenominado Estado Islâmico. Vinte e três por cento preferiram a neutralidade (confira em http://www.pcpsr.org/en/node/656).

Não em nosso nome
A falsa propaganda de que a dinastia Assad seria pró-palestinos e anti-imperialista poderia explicar o apoio mesmo que minoritário ao regime. A ideologia a respeito, lamentavelmente, é ecoada por partidos palestinos e por boa parte da esquerda mundial. Mesmo se fosse verdade, a jovem ativista palestina Budour Hassan dá o exemplo de consciência que deve permear a solidariedade e a resistência palestina: “Mesmo que nós suponhamos que o regime sírio de fato sustente a resistência palestina, significa que isso permite ao regime sírio controlar a Síria, proibir as pessoas de expressar suas opiniões, matar e torturar centenas de milhares de sírios apenas porque ousam dizer não a mais de 40 anos de opressão, a mais de 40 anos de injustiça? Claro que não. Mesmo que Bashar al-Assad fosse a única pessoa capaz de libertar a Palestina, eu não o apoiaria, e tenho certeza que muitos palestinos também não o fariam. Porque a nossa libertação não pode ser estabelecida sob a escravização de outro povo, particularmente quando essa escravização é uma escravização de nossas irmãs e irmãos na Síria.” (confira em https://goo.gl/wW2Uwy)

Ainda em sua fala, feita durante palestra no dia 17 de novembro de 2013 organizada pela Mena Solidarity Network, em New York, ela foi enfática: o regime sírio nunca apoiou verdadeiramente a resistência palestina, mas sempre usou essa causa para se manter no poder. Muitos palestinos como Budour têm se levantado contra isso e contra o genocídio do povo sírio nas mãos do ditador Bashar al-Assad e dizem em alto e bom som: “Não em nosso nome!”

Nada a agradecer
Ao desafiarem a visão dominante, não raro são tachados de ingratos. Será que deveriam agradecer a todas as investidas de Hafez al-Assad – que ficou no poder de 1970 até sua morte no ano 2000, deixando como sucessor o ditador de plantão – para quebrar o movimento palestino? Em artigo publicado no Middle East Monitor no dia 8 de julho de 2014, intitulado “Palestinos e o regime de Assad: para que a história e as gerações conheçam” (disponível em https://goo.gl/6LrSLK), Ali Sadeq enfatiza que o regime fez de tudo a seu alcance para minar a resistência palestina e sua organização. “Não hesitou em matar, conspirar ou fazer alianças com poderes amigos de Israel. (…).” Como escreve ele, com esse objetivo, prendeu políticos, ativistas e intelectuais palestinos, submetendo-os a torturas brutais.

Havia uma lista de nomes que, ao pisarem no aeroporto em Damasco, eram presos imediatamente. Hafez al-Assad, ainda segundo o artigo, costumava se referir ao líder palestino Yasser Arafat como “um obstáculo a ser removido”, chegou a prendê-lo e tentar assassiná-lo. Também protagonizou massacres de palestinos em campos no Líbano, como Tel Al Zaatar, no ano de 1976, e colaborou em outros. Em 1977, o líder da Frente Popular pela Libertação do Povo Palestino (FPLP), George Habash, afirmou em uma conferência em Beirute, no Líbano, que Hafez al-Assad matou mais palestinos do que Israel (veja em https://www.youtube.com/watch?v=U6ojBDBSNcQ).

Budour Hassan destaca: esses massacres a refugiados e as investidas contra a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) não podem ser esquecidos. Alguns afirmam que Bashar não é Hafez. A verdade, contudo, é que o legado foi seguido exemplarmente. Ilustrativo é o cerco criminoso e o bombardeio pelo regime sírio e aliados estrangeiros ao campo de refugiados palestinos de Yarmouk, quando jovens que ali viviam uniram-se à revolução popular e democrática iniciada em março de 2011.

Inimigos comuns
O revolucionário palestino Ghasan Kanafani, em “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (Editora Sundermann), identificou os inimigos da causa palestina já à época, os quais permanecem atuais: o sionismo/imperialismo, a elite palestina e os regimes árabes. Sobre o papel desempenhado por estes últimos durante a revolução de 1936-1939, ele afirmou que “os países árabes ao redor da Palestina jogavam dois papéis conflitivos entre si: por um lado, o movimento de massas pan-árabe servia de catalisador do espírito revolucionário das massas palestinas, já que existia uma relação dialética entre os palestinos e as lutas árabes em geral. Por outro lado, os regimes estabelecidos nos países árabes faziam de tudo para impedir e minar o movimento de massas palestino. O conflito cada vez mais agudo na Palestina ameaçava contribuir para o desenvolvimento mais violento da luta nesses países, criando um potencial revolucionário que suas classes dirigentes não podiam desprezar.

Um olhar atento permite observar que pouco mudou com relação aos regimes árabes. Os tiranos no poder são peça chave para Israel continuar a realizar seus crimes contra a humanidade. Mantêm fronteiras seguras, controlam os povos árabes e a resistência ao inimigo sionista com mãos de ferro, além de ter acordos militares e econômicos com Israel. Esses regimes têm sido perspicazes em usar a causa palestina para silenciar vozes contrárias, instrumentalizando a solidariedade popular ao afirmarem que é preciso manter a união árabe contra o “inimigo comum” – no caso dos governos, está mais para “amigo disfarçado de inimigo”.

A história demonstra que a dinastia Assad não é exceção, e Bashar faz jus à herança maldita deixada por seu pai. São 500 mil mortos na tentativa de sufocar a revolução ao longo de quase seis anos – a esmagadora maioria pelas mãos da ditadura Assad –, milhares de desaparecidos ou perecendo sob tortura nos cárceres do regime, milhões de refugiados e deslocados internamente.

Não cabe aqui contabilizar entre esses os palestinos: não somos números, assim como os sírios não são. Nossa luta é uma só. Jamais seremos livres enquanto outros povos continuarem a ser oprimidos, em especial os nossos irmãos árabes. Diante da bárbara tomada de Aleppo em dezembro último por parte do regime sírio e aliados estrangeiros – que culminou no assassinato e expulsão de milhares de habitantes e na destruição da cidade –, não se pode mais adiar um despertar de consciência.

Alguns podem pensar que o que se iniciou como uma revolução popular não existe mais. A poderosa propaganda de Bashar al-Assad de que estaria enfrentando o terrorismo e o imperialismo é um discurso recorrente em boa parte da esquerda. O imperialismo tem sido hábil em tentar minar o movimento por dentro. Sabemos que a revolução síria está numa encruzilhada e não sabemos se terá forças para resistir. O que temos certeza é que o responsável pelo que ocorre na Síria é o ditador Bashar al-Assad e que, diante da tentativa de sequestro da mais profunda revolução dos últimos tempos e seu isolamento internacional, manter a solidariedade incondicional aos verdadeiros revolucionários, desmascarar o regime sírio e denunciar seus crimes é premente. Os palestinos devem ser os primeiros da fila, honrando assim os muitos heróis que pereceram nas mãos dos Assad. Honrando assim sua rica história de resistência, que inspira lutadores em todo o mundo.