A reedição da obra completa e de uma biografia de Torquato Neto são ótimos convites para conhecer ou revisitar a obra e a vida do “anjo torto do Tropicalismo”No final de 2004, foi lançado Torquatália (Editora Rocco), que reúne, em dois volumes (Do Lado de Dentro e Geléia Geral), a obra completa do poeta que, em muitos sentidos, sintetizou o clima cultural do fim dos anos 60 e início dos anos 70, quando o país, e a juventude em particular, vivia prensado entre os horrores da ditadura e os delírios do Tropicalismo.

Trazendo toda a poesia e prosa de Torquato, além de parte de sua correspondência, Torquatália é essencial para quem quer conhecer um poeta que não só trabalhou com quem havia de melhor naqueles anos, como também, mesmo depois de sua morte, continua influenciando a cultura nacional. Basta lembrar que, em 1988, os “Titãs” musicaram seu poema Go Back.

Para completar o mergulho no universo de Torquato, há uma outra leitura possível e necessária. No início do ano, Toninho Vaz lançou Pra Mim Chega! (Editora Casa Amarela), um resgate da vida e obra do poeta. Tomando como título uma frase deixada no bilhete de suicídio do poeta, o livro de Toninho Vaz trança um perfil de um sujeito em que melancolia constante, altas doses de timidez e introspecção se mesclavam com uma personalidade marcada pelo radicalismo, uma postura nitidamente anarquista diante da vida, levada na base dos excessos e da total entrega à paixão.

Uma vida marcada por sucessivas tentativas de suicídio, que culminaram na sua morte no dia 10 de novembro de 1972. Um dia depois de completar 28 anos, despediu-se da mulher, Ana Maria, trancou-se na cozinha, escreveu seu último texto e ligou o gás.

No livro, Toninho Vaz especula se a bissexualidade e uma possível paixão por Caetano estariam entre as razões do suicídio. Hipótese que levou sua ex-mulher a tentar desautorizar a publicação da obra. Independente, contudo, do que o tenha levado a uma morte tão prematura, lembrar de Torquato é lembrar de uma vida curta, mas muito bem vivida.

A alma da geléia tropicalista
Chamado por Toninho Vaz de o “ideólogo do movimento Tropicalista”, Torquato, de fato, talvez tenha sido o sujeito que melhor traduziu o movimento. O Tropicalismo foi uma reedição espontânea e anarquizada da concepção do modernista Oswald de Andrade, que, em seu Manifesto Antropófago (1928), defendia que a única forma de se constituir uma cultura em um país marcado pela colonização era “canibalizando” (ou seja, devorando) a cultura dominante e transformando-a, pelas nossas próprias raízes, em algo novo.

Apropriando-se de elementos da cultura “pop”, que explodia mundo afora, festejando o “desbunde” que revolucionava o comportamento sexual nos anos pós-pílula (anticoncepcional), ainda marcada pela vaga de rebeldia que varrera o mundo, em 1968, mas, no caso brasileiro, cada vez mais presos às amarras da ditadura, que já se transformara em repressão assassina, os jovens tropicalistas tentaram mergulhar numa viagem cultural que re-oxigenasse um país cada vez mais sufocado e sufocante.
Uma tentativa utópica e, por isso mesmo, digna de nota.

O anjo torto
O caráter “antropofágico” da obra de Torquato Neto é um reflexo de sua própria vida. Nele, a idéia de “geléia geral” é um fato. Sua vida e obra são resultados de uma mistura constante de coisas e “gentes” das mais variadas tradições. O poeta não se ateve aos limites das fronteiras regionais ou nacionais, aos limites das atividades “especializadas” ou à distinção entre os meios de expressão.

Nascido em Teresina (PI), estudou em Salvador e conheceu Caetano Veloso e Maria Bethânia. Em 1962, foi para o Rio de Janeiro. Em 1968, acompanhando a leva de artistas que haviam sido exilados ou optaram pelo auto-exílio, Torquato partiu com Ana Maria para Londres, onde ficou até o início de 70. De volta ao Brasil, ligou-se ao chamado Cinema Marginal, com Júlio Bressane (Matou a Família e Foi ao Cinema) e Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha). Ficou amigo de Ivan Cardoso, que anos depois produziu o documentário Torquato Neto, o Anjo Torto da Tropicália, cujo título é baseado na letra de “Let´s play that” (veja ao lado), que Torquato fez inspirado em um poema de Drummond.

Ainda na década de 70, Torquato escreveu para diversas publicações, com destaque para o jornal Última Hora, que, entre 1971 e 1972, publicou a antológica coluna Geléia Geral, cujos textos sobre música, artes plásticas, cinema, poesia e modo de vida tornaram-se a tradução mais viva do movimento Tropicalista. No período mais violento da ditadura, Torquato teve a ousadia de fundar uma série de jornais “alternativos”, como Presença e Navilouca.

Engrossando sua geléia com uma deliciosa sopa de letras, Torquato ainda manteve uma produtiva relação com os poetas concretistas, Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. E trabalhou com o igualmente “antropófago” Hélio Oiticica, artista plástico e performático, que tirou a pintura e a escultura das molduras e pedestais para usá-las no próprio corpo, em seus famosos Parangolés.

O resultado de tudo isso está no conjunto da obra de Torquato. Uma obra digna de quem um dia definiu assim a vida: “É o risco; é estar sempre a perigo, sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”.

Let’s play that

quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that
Até o fim

Geléia Musical

Muito menos divulgada
do que deveria, a obra de e sobre Torquato merece ser vista e revista. Além
de sua poesia e artigos, concentrados particularmente em Os Últimos Dias de Paupéria, veja o que há de melhor neste banquete:

Tropicália ou Panis
et Circenses:
Verdadeiro “manifesto” do Tropicalismo, lançado em 1968, o disco, além de duas músicas de Torquato (“Mamãe Coragem” e ”Geléia Geral”), traz o que havia de melhor no movimento, como ”Panis et Circenses”, composta por Caetano e Gil, interpretada pelos Mutantes, com Rita Lee à frente, e ”Parque Industrial”, de Tom Zé, nas vozes de Caetano, Gal, Gil e Os Mutantes.

Todo dia é dia D
Lançado em 2002, durante o aniversário de 30 anos da morte do poeta, o CD traz algumas das mais belas criações de Torquato. Há uma série de versões originais, como as clássicas ”Geléia Geral” (1968) e ”Louvação” (67), ambas com Gilberto Gil; ”Mamãe Coragem” (68), com Nara Leão, ou ”Pra Dizer Adeus” (67), com Edu Lobo e Maria Bethânia. Além disso, há recriações excelentes de Nana Caymmi (”Cantiga”) e Luiz Melodia (”Começar Pelo Recomeço”) e interpretações de Elis Regina, Jards Macalé e Gal Costa.

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