Numa cidade com muitas atividades culturais, mas quase todas pagas e caras, eventos como a Virada Cultural de São Paulo são uma das poucas opções para muitos jovens poderem assistir espetáculos sem ter de desembolsar ingressos extremamente caros. O espetáculo que foi assistido nesse último fim-de-semana, contudo, foi da covardia da Polícia Militar e da hipocrisia dos governos tucanos e da grande imprensa. O que aconteceu foi bem diferente do que José Serra, Gilberto Kassab e a mídia afirmam.

O show do Racionais MCs, um dos mais aguardados da noite, teve mais de uma hora de atraso, o que aumentou o público, que vinha de outros palcos em que já haviam acabado as apresentações. Após o começo da terceira música tocada pela banda, “Vida Loka”, a Polícia Militar surgiu pelas ruas laterais com a Tropa de Choque e a Força Tática, suas unidades de elite, despejando cassetetes no meio do público. A desculpa para isso foi retirar um grupo de jovens que estavam no teto de uma banca de jornal.

A música foi interrompida, e o público começou a xingar a polícia. Foi o pretexto para a covardia da PM. O comandante da operação, Tenente Ricardo Mendonça, mostra, em sua declaração, a diferença de força entre Polícia e público. “Não tivemos escolha quando começaram a atirar garrafas contra os políciais. Fomos técnicos, usando apenas uma força tática especializada”, disse. Isso é uma mentira: em nenhum momento foram atacados pelo público. Após o começo dos ataques, parte da platéia reagiu jogando objetos e lixo que estava pelo chão nos políciais.

Outro comandante da operação, tenente Jackson, também mente ao acusar a banda de incitar a violência contra a polícia. O show foi interrompido, e Mano Brown ficou pedindo calma para o público e para a polícia. Alguns políciais subiram ao palco enquanto Brown tentava apaziguar o conflito e recomeçar o show, mas chegou o reforço da Tropa de Choque e a Tática, o generalizando o conflito. Brown, então, avisou que estava encerrada a apresentação e pediu a dispersão para evitar um confronto.

Nesse momento, o público começou a ser perseguido pela PM com o uso de bombas de gás ao longo das avenidas Rangel Pestana, Liberdade, XV de Novembro, Anhangabaú e Largo São Francisco. Outros palcos nas imediações tiveram as apresentações suspensas. O corre-corre se expandiu, e sobram cassetetes, balas de borracha e bombas de gás para todo o público que se divertia pelo centro.

Preconceito, despreparo e premeditação
No dia seguinte, a grande mídia estampava a versão da Polícia Militar de que a mesma teria reprimido um grupo de vândalos que estava fazendo arruaça. Jornais chegaram a estampar manchetes com o titulo de “irracionais”, numa alusão preconceituosa ao grupo. O governador José Serra (PSDB), hipocritamente, elogiou a atuação da PM, a mesma polícia que reprime trabalhadores e jovens todas as noites nas periferias da capital.

Tudo indica que foi uma ação premeditada da Polícia Militar contra o grupo. O mesmo tenente Jackson afirma que “é só ver o histórico dos Racionais, acaba sempre assim, mas nós já estávamos preparados para isso acontecer”.

O histórico que existe é de perseguição da PM contra os Racionais. Em 1994, um tumulto no centro da cidade foi causado depois que a Polícia invadiu um show do grupo e os prendeu na frente de 15 mil pessoas. A própria Secretaria de Cultura da prefeitura desmente a Polícia Militar e afirma que já organizou outras apresentações da banda na periferia e nunca havia tido problemas como os ocorridos. O produtor dos Racionais, Primo Preto, afirma que “há anos a polícia trabalha com má vontade nos shows da gente. O povo é tratado como gado”.

Algumas horas antes, durante as apresentações da Nação Zumbi e do Teatro Mágico, o público também tinha superado as expectativas. O local, onde muitos espectadores estavam assistindo ao show, segundo palavras da própria polícia, não era apropriado. Até aí, porém, a polícia não estava reprimindo ninguém. Mesmo depois que uma loja na avenida São João teve a sua porta de aço destruída, por volta das 21h (mais de seis horas antes do incidente na Praça da Sé), a PM não havia feito nada para evitar tais “incidentes”.

É importante lembrar que em todos os palcos espalhados pelo centro havia sempre um grupo de soldados da PM que, em nenhum momento, evitava que as pessoas fossem para tais locais “proibidos”. Nas proximidades do palco da rua Vieira de Carvalho, onde tocavam os nada suspeitos Agnaldo Timóteo e Cauby Peixoto, houve relatos de assaltos, e a PM nada fez para evita-los. Apenas reprimiu o público.

Se o show dos Racionais fosse na periferia, nada disso teria acontecido. Quando as suas letras de denúncia social vêm para o centro da cidade, incomodam a elite branca paulista, acostumada com a assepsia social que shows pagos em casas fechadas trazem para eles.