Niemeyer foi um intelectual engajado e ciente do papel da sua obra.

Era um idoso centenário que não abandonara as “utopias” do século XXA notícia do dia é o falecimento de Oscar Niemeyer. Sem dúvida nenhuma, um dos maiores gênios da arquitetura de todos os tempos. Um ser humano admirável, embora não desprovido de contradições, polêmicas e controvérsias, o que não o faz menos genial. Apesar da postura cretina de um colunista da Revista Veja, vinda justamente porque Niemeyer incomodava. Mas, o mais importante, é saber que ele foi fundamental, e que não trabalhou sozinho, pelo contrário, foi fundamental para nosso mundo porque reconheceu e atraiu pessoas especiais, e o fez justamente porque era especial. Era um sonhador que se pôs a colocar em prática seus sonhos.

Incomodava. Era um idoso centenário que não abandonara as “utopias” do século XX, a defesa da luta por justiça social, o comunismo, a modernidade – um ultraje para os conservadores e reacionários. Em um mundo que não tolera a rebeldia, quanto muito a restringe apenas a juventude, soube expor que a vida era para ser celebrada, mesmo no fim e na velhice avançada, e que também se deveria viver para combater o que não era bom haver na vida. Incomodou também por ter militado partidariamente, coisa que nunca escondeu, em um mundo que exige, por um lado, que os artistas sejam “neutros”, porém, por outro, que sucumbam aos apelos e ditames do mercado.

Como também sempre foi um cara consciente do uso libertador da arte, do design e da arquitetura, isto é, ser um intelectual engajado e ciente do papel da sua obra. E que procurou combinar a utilidade com a beleza, poesia no concreto, superando o próprio limite e objetivo da arquitetura moderna. E foi um dos poucos que se dedicou a arquitetura de uso cívico e público, enquanto a maioria dos arquitetos verte-se para os fins privados e imobiliários. Usou a arquitetura, se considerarmos uma forma de arte, talvez a mais coletiva, como meio coletivo, a serviço do coletivo.

O stalinismo de Niemeyer, o apoio a regimes bonapartistas sui generis pelo mundo e a líderes populistas no Brasil, obtenção de contratos milionários de governos burgueses, que tanto o tornaram alvo de violentas críticas, são apenas um dos vários traços de contradição desse gênio. Mas nenhum gênio é desprovido de contradições, de idiossincrasia, o que torna, e nos faz lembrar, que era um ser humano, especial, genial – mas, nem por isso, nunca um idiota, como sugere o autor idiota da coluna da revista. Sempre se colocou nesse papel não por oportunismo ou cobiça, mas por boa intenção, por paixão. Sua genialidade foi tamanha que até foi alvo da cobiça de governos burgueses sedentos, ou dos contratos com empreiteiras para edificação dos mesmos, ou no mínimo do prestígio em ter sua assinatura em uma obra. Porém, Niemeyer usava isso como oportunidade para o acesso da população, principalmente, a mais pobre a equipamentos arquitetônicos de uso público cheios de beleza.

Queria, além disso, fazer outra justiça a Niemeyer. Ele, apesar de ter se transformado no maior arquiteto brasileiro de todos os tempos, deve muito a outro arquiteto que ele próprio, em muitos momentos, reconheceu, inclusive, como mestre, e que realmente é muito mais pai de Brasília, o Lúcio Costa, mas que infelizmente o senso comum esqueceu. Não seria possível o conjunto arquitetônico de Brasília ser monumental, belo e ainda funcionar como cidade, sem o urbanismo do mestre de Niemeyer.

A arquitetura moderna não teria tido espaço no Brasil se Lúcio Costa não tivesse revertido sua própria trajetória pessoal e aberto oportunidades, inclusive a frente da Escola Nacional de Belas-Artes a arte moderna, e convidado Niemeyer e outros gênios, como Roberto Burle-Marx, Afonso Eduardo Reidy, Portinari, para construir o Edifício do Ministério da Educação e Saúde (atual Palácio Gustavo Capanema). E ainda ter convidado Niemeyer para co-projetar o pavilhão brasileiro na Exposição Mundial de Nova Iorque, apesar de ter perdido para ele próprio um concurso e etc. Lúcio Costa captou por meio da arquitetura e arte moderna um brasilidade que se industrializa e urbanizava, e captando bem isso, Niemeyer transformou-se em um aprendiz que supera o mestre.
Por fim, Niemeyer tem outro grande mérito, além da lealdade e humildade, esteve ao lado intelectualmente de outros grandes gênios das artes e da intelectualidade brasileira. Como também, abriu espaço para vários gênios, porém menos reconhecidos, na arquitetura, design de interiores, esculturas, mobiliário, murais, azulejaria, vitrais e paisagismo, etc. Pessoas do naipe de Athos Bulcão, Di Cavalcanti, Portinari, Alfredo Ceschiatti, etc. Cultivou amizade com outros gênios como Vinícius de Morais, Chico Buarque, Manuel Bandeira e com sambistas, ao ponto inclusive de compor uns sambinhas.

E não podemos esquecer da engenharia civil. Niemeyer desafiou engenheiros que transformaram suas plantas e croquis em edifícios reais por meio de cálculos estruturais, do uso do concreto, do vidro e do aço, com geniais colaboradores, tais como, Joaquim Cardoso, um poeta da engenharia, um engenheiro poeta, que entre suas poesias, plantas-baixas e calculadoras, permitiu as colunas, lajes, vãos livres e cúpulas revolucionárias de Brasília. E, nas últimas décadas, José Carlos Sussekind, que permitiu arrojos recentes como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói.

Em suma, Niemeyer foi, era e é especial, genial. Gênio não é santo, perfeito, porém Niemeyer é 100% gênio. E foi possível ao mundo reconhecer isso porque ele conheceu e atraiu pessoas especiais, e o fez justamente porque era especial. E era especial porque em um mundo de individualismo e resignação, ousou ser sonhador, um sonhador coletivo e que punha em prática os sonhos. Ousou usar sua profissão como meio de construir no plano concreto, com auxílio do concreto armado, a utopia. Errou, acertou, mas sempre genial.