Além de não resolver os problemas da saúde da população, programa prevê precarização do trabalho e mais privatização da saúde

Diante da situação caótica de saúde no país e pressionado pelas manifestações de junho, o governo lançou o Programa Mais Médicos. A iniciativa ficou rapidamente conhecida em função da importação dos médicos estrangeiros, especialmente os cubanos. Repudiamos veementemente a atitude racista e xenófoba de parte dos médicos que, além de expressar uma visão reacionária e execrável, faz confusão a respeito da pergunta que deve ser respondida no momento: o programa do governo resolve ou não a situação da saúde pública brasileira? 
 
O Mais Médicos rapidamente conquistou o apoio de 74% da população. Não é de se estranhar. Em pesquisa divulgada pelo site R7, o Brasil está em último lugar de 48 países estudados no quesito saúde, ficando atrás da Romênia, Peru e República Dominicana. Ocupamos o 72º lugar em gasto per capita em saúde. Esses são apenas alguns dados importantes, mas a vida real expressa melhor a crise do sistema público de saúde. As filas intermináveis para atendimentos e exames, a situação de barbárie da estrutura dos hospitais, a falta de medicamentos e equipamentos entre outros inúmeros problemas. Quando a população vê uma medida que diz ter o objetivo de melhorar a saúde, obviamente ela é bem vista. Mas será que temos o que comemorar? 
 
Onde estão os médicos brasileiros?
O Brasil possui uma média de 1,88 médicos para cada 1.000 habitantes. Para se ter uma comparação, a média global é de 1,4, mas os países ricos possuem ao redor de 2,7. Ou seja, de fato, precisamos de médicos. Mas onde?
 
Enquanto existem 700 municípios que não possuem um só médico, nas capitais a média de médicos por habitantes é de 4,2, índice muito maior que nos países desenvolvidos. Entre as regiões, a disparidade chama atenção: no Sudeste, a média é de 2,6, mais que o dobro que no Nordeste (1,2). Na região Norte, há menos que um médico para cada 1.000 pessoas.
 
São essas disparidades que dão a base para os argumentos do governo: seria necessária uma política especial e a importação de estrangeiros, já que os médicos brasileiros não teriam a “disposição” de ir para o interior. Mas será que é mesmo por falta de disposição que, em poucas semanas, houve tanta desistência do recém criado programa? Em Vitória da Conquista (BA), dos cinco médicos que deveriam ter começado, três já desistiram; na região metropolitana de Campinas, dos 13 selecionados, cinco pediram para sair; assim como 11 dos 26 profissionais previstos em Fortaleza.
 
Ocorre que as péssimas condições de trabalho afastam os profissionais de saúde dos municípios mais pobres. Ninguém gosta de ver pacientes sofrendo ou morrendo sem ter o que fazer. “Dias atrás morreram cinco por falta de sangue, semana passada, um por falta de glicose. Não passo um plantão sem assinar ao menos um óbito evitável. Nosso maior problema é falta de estrutura”, relata um médico em reportagem da revista Carta Capital sobre um hospital do interior da Bahia. 
 
Não é apenas contratando médicos que a saúde nessas regiões vai melhorar. A política especial para resolver esse problema deve ser investir integralmente na saúde, com estrutura, profissionais e também uma melhoria mais global na situação social da população. Basta lembrar que nem 40% dos lares brasileiros têm saneamento básico.
 
Quanto custa ter uma saúde de qualidade?
Como falamos, a média de médicos nas capitais é superior ao que é preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Isso quer dizer que em São Paulo, Salvador ou em Porto Alegre não faltam médicos? Não é isso o que sentimos na prática. Um levantamento feito pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) mostrou que mais que a metade dos serviços de emergência vistoriados no estado mais rico do país trabalham com equipes médicas incompletas. 
 
O problema é que os médicos não estão servindo ao sistema público de saúde. O setor privado tem 3,9 vezes mais postos de trabalho por usuário do que o SUS. E por que tem tão pouco médico nas cidades menores e no SUS?
 
Não é novidade pra ninguém que o governo não prioriza investimento para as áreas sociais. Em 2012, o governo federal gastou 44 % do Orçamento da União para pagar juros da dívida pública, enquanto a Saúde recebeu apenas 4,17%. Eis a explicação para as péssimas estruturas da rede de saúde e as condições desfavoráveis para que os médicos optem pela carreira pública em detrimento da privada: a falta de prioridade.
 
Um programa que precariza o trabalho e privatiza a saúde
Uma coisa já está clara: não será apenas com a contratação de médicos que salvaremos o SUS. Mas esse é o único problema do Programa Mais Médicos? Infelizmente, não. 
 
O Programa prevê a contratação de médicos sem nenhum direito trabalhista. O artigo 11 deixa claro: “As atividades desempenhadas no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil não criam vínculo empregatício de qualquer natureza.” Além de se configurar em um retrocesso em relação aos direitos conquistados pela categoria, esse fato revela a forma leviana com que o governo está tratando a questão. As bolsas são válidas por três anos e não há garantia de manutenção dos profissionais nas regiões inseridas no programa.
 
Outra questão importante é o artigo 20: “Fica a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH – autorizada a conceder bolsas para ações de saúde, a ressarcir despesas, a adotar outros mecanismos de incentivo a suas atividades institucionais, e a promover as ações necessárias ao desenvolvimento do Programa Mais Médicos”. A EBSERH é uma face muito cruel da privatização da nossa saúde, contra a qual há um forte movimento dos estudantes e dos trabalhadores das universidades federais.
 
Além do Mais Médicos não resolver os problemas da saúde,  ele prevê precarização do trabalho e mais privatização. Sabemos que o Brasil precisa de mais médicos. Mas precisa também de mais enfermeiros, dentistas e psicólogos. E de esparadrapos, leitos nos hospitais e medicamentos. E de mais verba pública pra saúde pública. Sabemos que o programa gera expectativa em grande parcela da população, mas infelizmente ele não solucionará os graves problemas que temos hoje, nem mesmo a demanda por médicos. A medida é uma forma que o governo encontrou para dar resposta a um problema real, com uma política populista, que desresponsabiliza o governo pelo estado deplorável da saúde e ainda tenta jogar a população contra os médicos brasileiros. 
 
Devemos Continuar lutando por 10% do PIB para a saúde, por mais escolas médicas públicas e de qualidade, pela valorização dos profissionais de saúde, contra a EBSERH e todo tipo de privatização da saúde.  
 
*Artigo originalmente publicado no Opinião Socialista 469