Kátia Abreu e Dilma Roussef. Foto Valter Campanato/Agência Brasil
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Nos artigos anteriores (aqui e aqui), discutimos os dados do Atlas da Violência 2017 (IPEA) e começamos a explorar a relação entre o aumento dos homicídios entre 2005 e 2015 e o caráter de Frente Popular dos governos petistas a partir das alianças que Lula e Dilma construíram com gentalha como Maluf, Kassab e o próprio Temer, todos eles com longa ficha corrida no que se refere à violência contra os mais pobres e oprimidos.

Aqui, queremos discutir um dos símbolos mais asquerosos da Frente Popular formada pelo PT: a aliança com a dirigente ruralista Kátia Abreu (dona de uma das maiores fazendas de soja e de gado no Tocantins) e como isto se refletiu no aumento dos homicídios no campo. O Atlas, por razões óbvias, não mapeou os homicídios diretamente relacionados à luta de classes, mas todos dados indicam que eles cresceram na mesma proporção (ou ainda maior) do que aqueles cometidos contra o conjunto da população.

De mãos dadas com a “Rainha da Motoserra”
Em primeiro lugar, é preciso que se diga que a aliança entre os petistas e os ruralistas cumpriu um papel decisivo para que o setor do agronegócio enfrentasse a crise iniciada em 2008. Mas, como veremos, para o povo pobre e negro, ela só significou uma coisa: os governos petistas deixaram os latifundiários ainda mais à vontade para fazer o que sempre fizeram.

As relações espúrias entre os petistas e a principal dirigente da maior entidade do agronegócio no país, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), não começaram quando ela foi levada, em 2014, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento pelas mãos de Dilma Rousseff. Kátia se aproximou do PT ainda no final do segundo mandato de Lula, quando ainda era senadora. Apesar de ter apoiado José Serra (chegando a ser cotada para ser sua vice), em 2011, ela deixou o DEM (ex-PFL) e migrou para o PSD, aproximando-se ainda mais da base aliada. Em 2013, Kátia já estava no partido do ex-vice de Dilma e, daí, foi um pulo até o Ministério da Agricultura.

A proximidade da presidente e da líder ruralista pode ser exemplificada pelo vergonhoso discurso Dilma na cerimônia de posse de Kátia na CNA, em dezembro de 2014: “Honra e orgulha as mulheres do nosso país, pela capacidade de trabalho, pelas convicções firmes e pelo fato de ser uma lutadora incansável por um segmento que é muito importante para o país que é a agricultura e a pecuária brasileira”.

Neste mesmo discurso, Dilma deixou evidente que a aliança com Kátia era um pacto com todo o agronegócio. Prometendo que todas as sugestões da CNA seriam ouvidas, a presidente lembrou que seu governo se caracterizava por zelar pela “pujança do agronegócio”, e iria garantir, por exemplo, “juros adequados (…) tão generosos quando nossa capacidade permite”.

E para que não houvesse dúvidas sobre suas generosas intenções, Dilma concluiu: “As reivindicações do agronegócio serão sempre uma baliza para a construção das políticas de apoio ao setor (…). Desejo grandes conquistas para agronegócio e para o produtor rural brasileiro. Tenho certeza de que vamos caminhar juntos, e de que estaremos muito próximas nesses próximos quatro anos, mais próximas do que nunca”.

Para além de sua trajetória, o que poderia se esperar de Kátia ficou evidente já em uma de suas primeiras entrevistas como ministrada, dada ao jornal Folha de S. Paulo, no dia 5 de janeiro de 2015. Afirmando que o “latifúndio não existe mais”, ela anunciou a disposição de se enfrentar com os movimentos (“Agora, passou o pé pra dentro da terra, tô dentro. Inclusive índio”), condenou a demarcação de terras e qualquer projeto de reforma agrária, afirmou que iria “apostar tudo na privatização”, prometeu “resolver” o suposto endividamento do setor e se rasgou em elogios para Dilma.

E vale lembrar que a fidelidade da ruralista (ou pagamento pelos bilionários favores) ficou mais do que evidente no fato de que ela foi uma das principais defensoras da presidente no processo de impeachment.

“A maior concentração fundiária já vista no país”
A dimensão dos “favores” e “agrados” pode ser exemplificada por um dado que praticamente coincide com os anos cobertos pelo Atlas da Violência. Entre 2003 e 2015, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário, os recursos oficiais disponíveis para médios e grandes produtores rurais aumentaram de R$ 20,5 bilhões para R$ 187,7 bilhões, enquanto que os do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) subiram de miseráveis R$ 4,2 bilhões para pífios R$ 28,9 bilhões. Ou seja, durante as gestões petistas, o financiamento para o agronegócio manteve-se no patamar médio dos 85% do total do financiamento agrícola oficial.

E, por isso mesmo, não é difícil entender porque Dilma entrou para a História como a responsável, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pela menor média anual de assentamentos desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Segundo os dados oficiais (que são bastante questionados pelos movimentos), a petista distribuiu terras a 26,8 mil famílias a cada ano, contra 76,7 mil no período Lula e 67,5 mil nos dois mandatos do tucano. É isso que possibilitou que, em 2014, no país “sem latifúndios”, 2,3% dos proprietários ainda concentrassem 47,2% de toda área disponível à agricultura no país.

Uma situação que foi sintetizada no artigo “Camponeses, indígenas e quilombolas em luta no campo: a barbárie aumenta”, publicado no dossiê “Conflitos no Campo: Brasil 2015” (disponível aqui), da Comissão Pastoral da Terra, no qual o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirma que “na contramão da história, o governo petista está promovendo a maior concentração fundiária já vista no país” (p. 30).

Para além dos benefícios, dos lucros absurdos e do trânsito e “liberdades” que setores do agronegócio, como o Grupo JBS, ganharam nos corredores e subterrâneos dos governos petistas, uma das formas mais lamentáveis de se constatar o significado da proximidade com a corja de Kátia Abreu são os dados referentes aos assassinatos de indígenas, sem-terras e quilombolas.

Uma política racista e genocida contra os quilombolas
Para garantir a “pujança” e interesses dos latifundiários, o PT de Dilma e Lula pisoteou bandeiras históricas do movimento que, num passado distante, eles próprios ajudaram a erguer. Exemplo disto foi o que aconteceu com as terras remanescentes de quilombos. Não temos os números totais, mas sabemos que os assassinatos são cotidianos, particularmente em regiões do Norte e Nordeste. O que podemos afirmar, com certeza, é que as políticas dos governos petistas têm tudo a ver com isto.

Dilma também vai entrar para a História por ter titulado, e ainda só parcialmente, pouco mais de uma dezena de territórios quilombolas em seus dois mandatos. E o que realmente fez em relação a estes territórios, diga-se de passagem, desmente por completo aqueles que, hoje, para sustentar a tese do suposto golpe, afirmam que foi Temer que extinguiu os programas relativos aos territórios quilombolas. Que o ex-vice de Dilma está atacando, sem dó nem piedade, as terras de nossos ancestrais, não temos dúvida. Contudo, essa também foi uma herança que ele recebeu do PT.

E não somos somente nós que dissemos isto. Este foi o conteúdo de uma nota da Frente Nacional Quilombola (FNQ), divulgada em março de 2012: “(…) Dilma Rousseff, seguindo a mesma direção de Lula da Silva, adota uma política racista, impedindo a titulação dos territórios quilombolas em todo o Brasil. O Governo Lula chegou ao seu último ano de mandato emitindo apenas 11 títulos às comunidades quilombolas (…) já sob o governo Dilma, as comunidades quilombolas não mais contam com um programa específico (…) não mais existe o programa Brasil Quilombola.”

Algo que, ainda segundo a FNQ, está por trás dos assassinatos que cotidianamente atingem aqueles e aquelas que preservam as terras e as tradições de nossos(as) ancestrais: “(…) o governo Dilma toma a opção pelo latifúndio, pelo agronegócio, pela destruição das florestas e extermínio dos povos e comunidades tradicionais, a exemplo dos irmãos índios, ribeirinhos, quebradoras de coco babaçu, faxinalenses, entre tantos outros” e, particularmente “em relação às comunidades quilombolas, o governo Dilma opera um verdadeiro genocídio”.

Esse é um genocídio cujas armas são muitas, a começar pelo mais amplo e racista descaso. A “opção pelo latifúndio” deixou nossos irmãos e irmãs literalmente à beira da morte. Basta um dado: segundo um relatório divulgado pelo Ministério do Desenvolvimento Social, em 2013, 55,6% dos adultos e 41,1% das crianças residentes em comunidades quilombolas viviam com fome ou sob risco de inanição.

Uma situação que pode ser explicada por um dado levantado pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), divulgado em março de 2013: no ano anterior, somente 14% dos recursos para a área foram usados. Do montante autorizado (parcos R$ 407 milhões) para custear ações nas áreas de educação, saúde, agricultura, cultura, enfrentamento ao racismo e saneamento básico para essas comunidades somente R$ 56,9 milhões foram efetivamente empenhados. O resto deve ter ido parar em alguma maleta de empreiteiro ou na gaveta de alguém do Congresso ou do Planalto.

Por mais que se fale hoje, com razão, que Temer quer atacar ainda com mais força o povo quilombola, foi o PT, no entanto, que abriu o caminho para o ex-vice de Dilma. É o PT o principal responsável pelo fato de até o início de 2016 só existissem 165 comunidades com a titulação da terra (a única coisa que pode lhes garantir o mínimo de proteção), enquanto 1.525 aguardavam pelo título da terra sempre prometido, mas nunca entregue.

Isso para não falar de milhares de outras comunidades (calcula-se que existam, no mínimo, 5 mil país afora) que sequer entraram com o processo em função da enorme burocracia exigida. Algo que ficou ainda pior depois que, sob o governo Lula, o INCRA baixou a chamada Instrução Normativa nº 57, de 2009, cujo significado foi sintetizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo: “a norma do Incra mereceu o repúdio dos quilombolas e da sociedade por tornar o processo de titulação ainda mais burocratizado, menos eficiente e mais oneroso”.

Um genocídio no campo
Evidentemente e por mais “paciência” que o PT pedisse ao povo, essa situação não foi aceita sem protestos. Segundo o Dossiê da CPT, como reação à parceira PT-agronegócio, somente em 2015 explodiram 1.217 conflitos no campo, envolvendo 816 mil pessoas. Contudo, os parceiros de Dilma também reagiram. Entre 2014 e 2015, segundo Ariovaldo Oliveira, o número de assassinatos nos conflitos por terra aumentou em 39%, com um salto de 36 para 50 mortes (de indígenas, quilombolas, posseiros, sem-terra, ambientalistas e trabalhadores rurais).

Uma situação que o geógrafo sintetizou de forma contundente: “Esse é o quadro da violência e, portanto, da barbárie que reina no campo, enquanto isso, os governos nada fazem. A reforma agrária não é feita. Os crimes não são apurados. As polícias militares não prendem os assassinos. A justiça não julga, e quando julga nem sempre condena os criminosos. Enfim, o direito não se respeita e a justiça não se faz.” (p. 42)

A explosão de violência no campo sob os governos petistas ainda pode ser exemplificada por outro relatório da Pastoral da Terra que atesta que, em 30 anos de pesquisas sobre a violência, foi entre 2013 e 2014 que foi registrado o maior número de tentativas de assassinatos praticadas por empresários, pistoleiros e proprietários de terras contra indígenas, posseiros, sem-terras, quilombolas e seringueiros. O aumento foi de exatamente 273%. Em 2013, foram 15 tentativas; em 2014, o número saltou para 56. Na região Norte, o aumento foi de absurdos 3.200%, com 32 tentativas (28 delas no Pará). Evidentemente, o número de mortos também cresceu: foram de 34 (2013) para 36 (2014).

No mesmo período, outro dado é exemplar da cumplicidade do Estado com esta situação tenebrosa: o crescimento, também entre 2013 e 2014, de 92% no número de famílias despejadas por ordem judicial (num total de 12.188 no país), o que, segundo coordenador do CPT, Ruben Siqueira (em entrevista ao portal Último Segundo/IG, em 09/05/2015), é “ilustrativo de que o Estado acaba sendo cúmplice de toda a violência que assola o interior brasileiro”.

Analisando os resultados da pesquisa, na mesma entrevista, o professor e antropólogo Spensy Pimentel, do departamento de Etnologia Indígena da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), destacou o já mencionado “descompromisso” das autoridades, inclusive as petistas: “Na época do governo Lula, foi encaminhada pelo presidente a solução definitiva para a questão, que era a demarcação de terra. Mas, no fim, ele não fez nada. Assim como os governos anteriores, e que se repete com Dilma, todos falharam”.

Contribuindo para a agonia dos povos indígenas
Nós diríamos que houve mais do que uma “falha”. Houve uma opção política: estar do lado de Kátia Abreu e de todos os que se opõem à reforma agrária e à demarcação de terras. Foram estas escolhas que fizeram com que, sob os governos Lula e Dilma, os assassinatos de indígenas também se multiplicassem, como foi denunciado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Segundo dados do CIMI, em comparação com os oito anos do tucano FHC, durante os mandatos de Lula e Dilma, o assassinato de indígenas no Brasil aumentou 269%. No governo FHC foram registrados 167 assassinatos, uma média de 20,8 mortes por ano. Já nos mandatos de Lula, o número subiu para 452 assassinatos, uma média de 56,5 por ano, ou um crescimento de 271%. Em 2011, o primeiro ano do governo Dilma, foram contabilizados 51 assassinatos e, em 2012, outras 57 mortes, uma média de 54 mortes por ano e 260% maior do que a do governo tucano.

Considerando a primeira década dos governos petistas, entre 2003 e 2013, o CIMI calcula que foram mortos 564 indígenas no país (57% deles, ou seja 319 pessoas, somente no Mato Grosso do Sul). Um genocídio que fez com que o secretário do CIMI, Cleber Buzatto, chegasse a seguinte conclusão: “Havia uma expectativa muito grande de que com a eleição de Lula seriam destravados os processos de demarcação que historicamente eram muito lentos (…). Mas na realidade o que aconteceu foi uma retração ainda maior. Isso levou à radicalizações de conflitos e a uma série de manifestações que acabaram em violência. Eles se sentiram traídos”.

Eles traem, o povo paga!
Nós não localizamos o aumento de mortes, nem dos indígenas nem do conjunto da população negra e pobre, no campo ou na cidade, na radicalização dos conflitos. Não é da luta por direitos e justiça que brota a violência. O genocídio escancarado pelos dados nasce da ganância sanguinária de uma burguesia, urbana ou agrária, disposta a tudo e qualquer coisa para manter seus lucros.

E não temos nenhuma dúvida que tudo isto foi alimentado pelas traições do PT que deu “carta branca” ou vez vistas grossas para as ações criminosas seus novos “companheiros” no agronegócio, nos bancos, empresas, empreiteiras etc. porque passou a compartilhar com eles de uma mesma visão de mundo e uma mesma perspectiva econômica.

Uma constatação que, também, não é só nossa. Esta também é a opinião de Ruben Siqueira, da CPT: “É o modelo econômico do Brasil que causa isso. Por um lado, temos o Estado que incentiva e facilita novos empreendimentos [hidrelétricas, mineradoras] em lugares com conflitos. Este é um processo que acontece em todos os Estados. Por outro, temos o Estado que não pune os crimes, que não investiga (…). É uma situação que só favorece a multiplicação da violência.”

Uma impunidade que, diga-se de passagem, também continuou a correr solta nos mandatos petistas, como também foi destacado no relatório da CPT. Segundo a pesquisa, do total de 1.270 casos de homicídio registrados entre 1985 e 2015 (vários deles incluindo mais de uma pessoa assassinada), apenas 108 foram julgados, menos de 10% deles, e somente 28 mandantes dos crimes e 86 executores acabaram condenados por seus crimes. Um total de apenas 114 pessoas punidas em um período de 30 anos em que ocorreram, no mínimo, 1.714 assassinatos.

E, para exemplificar o peso dos “novos empreendimentos” no aumento dos assassinatos, nos próximos artigos iremos voltar ao caso de Altamira, a sede da hidroelétrica de Belo Monte que, não por acaso, carrega o triste título de campeã em homicídios. No mesmo sentido, também abordaremos o crescimento da violência nas regiões cobertas por outro símbolo dos “planos de crescimento” do PT: a fronteira agrícola de MATOPIBA (nas regiões do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).