João Silvério Trevisan, um dos fundadores do jornal
Redação

Documentário resgata episódio importante na história da imprensa gay e alternativa do país

Estreou nesse final de semana, em São Paulo, o documentário Lampião da Esquina. O filme é dirigido por Lívia Perez e Noel Carvalhoe seu lançamento fez parte da programação da 21ª edição do festival internacional de documentários É Tudo Verdade. O filme, com cerca de 80 minutos de duração, conta a história do Lampião da Esquina, um dos principais e mais importantes jornais da história da imprensa LGBT e alternativa no Brasil.

O jornal tinha uma tiragem mensal, com quase 20 mil exemplares em seu auge, e circulava em todo o território nacional. Além de ter um caráter profissional, tanto na confecção quanto na produção das matérias, com entrevistas, reportagens e séries especiais, foi o primeiro periódico a tratar de maneira política a questão da homossexualidade.

Os primeiros jornais
A história da imprensa LGBT no Brasil é uma história recente. As primeiras publicações voltadas exclusivamente para esse público são da década de 1960. A primeira publicação que se tem registro é O Snob, idealizado por Agildo Guimarães. No início, a publicação seria apenas para protestar contra a escolha do júri para o concurso Miss Traje Típico, organizado pela Turma OK (mais antigo grupo gay do país e em atividade até hoje).Logo, O Snob tornou-se popular e com isso transformou-se em uma pequena revista mimeografada e com pouco mais de trinta páginas.

Ainda na década de 60, também a partir de membros da Turma OK, foram criados outros jornais como Os Felinos, Le Femme e Okeizinho, entre outros. Chegou-se, inclusive, a se formar a Associação Brasileira de Imprensa Gay, a ABIG.


Batalha de Stonewall, um marco na luta pelos direitos dos LGBTs

Stonewall e a Ditadura
Em junho de 1969, com o clima político tenso com o AI-5 já em vigor, os editores de O Snob resolvem encerrá-lo. No mesmo mês, entretanto, na madrugada do dia 28, acontece nos Estados Unidos a batalha de Stonewall. Cansados da violência, da perseguição e das extorsões, os frequentadores do bar StonewallInn, em Nova Iorque, levantaram-se e enfrentaram a polícia nas ruas durante quatro dias. O episódio entrou para história como o dia em que a comunidade LGBT decidiu dar um basta à sua perseguição. Meses depois foi criado o Gay Liberation Front, primeiro grupo organizado de defesa dos direitos civis da comunidade LGBT.

No Brasil, entretanto, a ditadura fechava o cerco. Mesmo mais próxima ao “desbunde” e à contracultura, a imprensa LGBT também foi perseguida. Eram comuns a prisões de pessoas LGBT sob o argumento de “atentado à moral e aos bons costumes”. Discutindo a sexualidade abertamente, muitas publicações continham nus masculinos e, para pessoas como o Ministro Alfredo Buzaid, isso era questão de segurança nacional. Certa vez, esse mesmo ministro, chegou a declarar que o erotismo, a pornografia e o amor livre eram incentivados pelo comunismo internacional com propósitos políticos.

Lançamento de Lampião
Em 1977, Winston Leyland faz uma visita ao Brasil. Winston era editor-chefe da revista Gay Sunshine, editada em São Francisco e voltada para a comunidade homossexual. Na ocasião ele deu várias entrevistas para os principais jornais do país e também participou de reuniões com intelectuais brasileiros.

Numa dessas reuniões, organizadas pelo advogado João Mascarenhas na casa do artista plástico Darcy Penteado surgiu a ideia de lançar no Brasil uma publicação diretamente voltada para homossexuais. Na reunião também estavam presentes João Silvério Trevisan, o crítico de cinema e professor Jean-Claude Bernardet, o escritor Aguinaldo Silva e o antropólogo Peter Fry.

Nascia assim, em abril de 1978 o Lampião da Esquina. Em seu primeiro número, a matéria de capa fazia a defesa de Celso Curi, processado por atentado à moral e aos bons costumes por ter se referido ao Rio de Janeiro como a “cidade ma-ra-vi-lho-sa”, na Coluna do Meio do jornal Última Hora de São Paulo.

Com muito bom humor, o jornal trouxe para suas páginas o linguajar próprio dos guetos LGBT. Segundo Aguinaldo Silva, a publicação não era apenas para “a bixinha da Zona Sul”, mas também para os homossexuais da periferia. Tanto é assim que, na primeira vez em usaram a palavra gay, ela apareceu em sua forma aportuguesada: guei. Essas palavras eram vetadas da mídia tradicional (segundo os manuais, “lésbica” deveria ser substituído por “feminista”), conta Trevisan.


Da esquerda para direita: primeiro número do Lampião, em defesa de Celso Curi; entrevista com Lula e a polêmica sobre o machismo na esquerda; entrevista com Abdias Nascimento sobre questões raciais

Os conflitos com a esquerda
Sempre tratando seus assuntos de forma política, o Lampião abordou assuntos como a violência contra homossexuais, prostituição masculina, Igreja, travestismo e outros, além dos assuntos de outras minorias como a questão das mulheres e do negros.

Justamente por isso, mais de uma vez, o Lampião causou polêmica denunciando o machismo dentro da esquerda. Em julho de 1979, publicaram uma entrevista com Lula chamada “Alô , alô classe operária: e o paraíso, nada?”. Eles passaram alguns dias no ABC paulista ouvindo operários e dirigente sindicais e, entre as muitas declarações polêmicas, estão as de Lula que afirmou que “feminismo é coisa de gente que não tem o que fazer” e que homossexualidade na classe operária era algo que ele “não conhecia”.

Outra edição também foi mal vista pela esquerda por trazer na capa Fidel Castro travestido de Carmen Miranda. A reportagem fazia sérias denuncias à homofobia da ditadura castristas.

O fim de uma experiência
O Lampião da Esquina publicou, ao todo, 36 edições. No final de 1979, o jornal passava por dificuldades financeiras. Alguns dos colaboradores, como Aguinaldo Silva, defendia uma mudança na linha editorial rumo a um jornalismo mais cultural e de entretenimento. Outros, como Trevisan, defendiam uma maior politização do jornal. Nessa época, alguns deles já participavam do Somos, um grupo de discussão sobre os direitos dos LGBT. Nesse grupo participavam também quatro militantes da Convergência Socialista. A situação tornou-se insustentável e o jornal deixou de circular.

Mesmo com a vida curta e com todas suas contradições, o Lampião da Esquina cumpriu seu papel. De maneira politizada e crítica, rompeu com a hipocrisia do silenciamento e a marginalidade dos LGBTs, discutindo abertamente suas questões. Para se ter uma ideia de sua importância, foi a partir do jornal que se organizou o primeiro encontro nacional de LGBT’s no país, em 1980, em São Paulo

A história do Lampião da Esquina é uma história que merece ser lembrada. E o filme de Lívia Perez e Noel Carvalho, é um filme que merece ser assistido. De maneira bem humorada, o documentário cumpre um papel muito importante, que é o de manter acesso o brilho do Lampião.