Eduardo Almeida

Uma nova tragédia se abateu sobre o Haiti. A passagem do furacão Matthew deixou um rastro de destruição no país. Foram fortemente atingidos o litoral sul e também uma parte do interior, no oeste do país. As cifras oficiais falam em quase 900 mortos e 350 mil desabrigados. Seguramente, a realidade é bem pior. Além disso, existem milhares de casas destruídas, centenas de edifícios públicos derrubados e milhares de animais mortos.

Estive uma vez nessa parte do oeste do país, na região de Artibonite, onde existe uma forte luta social pela terra. Agora, isso se transformou na batalha pela sobrevivência. Na descrição de Batay Ouvriyé (uma organização de luta no país): “o povo perdeu tudo, casas, animais, colheitas destruídas, terrenos evacuados. Um desastre para as classes populares rurais”.

Não se trata só de um desastre natural. Os efeitos do mesmo furacão sobre uma sociedade vivendo em condições dignas não causaria tal destruição. Em janeiro de 2010, um terremoto de magnitude 7,0 na escala Richter destruiu 70% da capital do Haiti, matando 212 mil pessoas (cifras oficiais) e deixando 1,5 milhão de desabrigados. Pouco mais de um ano depois, um terremoto de maior magnitude (8,9 na escala Richter) atingiu o Japão, matando seis mil pessoas.

Tampouco se pode acreditar nas ações humanitárias que começam a se desenvolver no país. Após o terremoto de 2010, centenas de milhões de dólares foram destinados a essas ações. Grande parte desse dinheiro foi para o bolso dos governantes corruptos.  Muitas ONGs também se enriqueceram. Basta visitar Porto Príncipe hoje, seis anos após o terremoto, para constatar os sinais da destruição em toda parte na cidade que não foi reconstruída.

A verdade, contada pelos haitianos, é que os poucos sobreviventes do terremoto foram retirados dos destroços pelos próprios haitianos com as mãos ou com pás improvisadas. Por isso, só foram resgatadas com vida menos de 200 pessoas. Nada indica que agora será diferente.

A Minustah – tropa de ocupação da ONU dirigida pelo exército brasileiro – foi de uma incapacidade brutal durante o terremoto. Batay Ouvriyé descreveu que a preocupação fundamental das tropas naquele momento era proteger os quartéis contra a população faminta, sem cumprir um papel qualitativo no salvamento dos atingidos. Nada indica que agora será diferente.

Na verdade, existem agora duas tragédias no Haiti: o furacão e a ocupação militar.

Uma história impressionante
A imagem que se tem dos haitianos no Brasil é a da miséria em que este povo vive. Essa é apenas uma parte da verdade. A outra só pode ser entendida se conhecermos a história do Haiti: este também é um povo rebelde e altivo, com um histórico exemplar de lutas e vitórias em seu passado.

O povo haitiano protagonizou uma das mais espetaculares revoluções de todos os tempos. Os haitianos realizaram a primeira e única revolução dos escravos vitoriosa da história, em 1804. Foi também a primeira revolução anticolonial vitoriosa das Américas. Os escravos libertos derrotaram todos os exércitos dominantes da época, incluindo o espanhol, o inglês e o francês de Napoleão.

O imperialismo não podia deixar que a semente da revolução haitiana se espalhasse. Por isso, impôs um duríssimo bloqueio econômico ao país, que acabou por destruir sua economia.

A brutal devastação do país não tem nada a ver com a natureza. É consequência da pilhagem imperialista que continua existindo até hoje.

Os nomes de Toussaint L’Ouverture e Dessalines (líderes da revolução) estão espalhados por todas as praças e monumentos do país. O povo negro haitiano, tão explorado e oprimido, tem uma história da qual se orgulha até hoje. As seguidas ocupações militares estrangeiras indicam que o imperialismo teme que um dia ela possa ser retomada.

A farsa da “ocupação humanitária”
Em fevereiro de 2004, agentes da CIA e fuzileiros navais dos EUA invadiram o palácio do governo haitiano. Prenderam o presidente eleito Aristide e o deportaram para a República Centro-Africana. Estava consumado mais um golpe de Estado no Haiti, mais uma intervenção militar norte-americana.

No mesmo dia, o Conselho de Segurança da ONU votou apressadamente uma resolução de emergência, mandatando os militares norte-americanos e franceses como a vanguarda de uma força multinacional que deveria “estabilizar” o país para legalizar a ocupação militar.

Para disfarçar a intervenção imperialista, o presidente Bush recorreu a Lula. Tendo que lidar com o desgaste da ocupação do Iraque, Bush “terceirizou” a ocupação. No dia primeiro de junho, chegou ao Haiti a Minustah (Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti), liderada por tropas brasileiras e composta por soldados da Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e outros países. Estas continuam sendo, até hoje, as forças militares que sustentam o plano econômico e político do imperialismo norte-americano para o Haiti.

A maioria dos trabalhadores continua acreditando que as forças de ocupação cumprem no Haiti uma missão “humanitária”. Mesmo parcelas importantes dos ativistas que são contrários a outras ocupações militares acreditam que o caso do Haiti é “diferente”.

O governo Lula cometeu uma das maiores indignidades da história brasileira, aceitando liderar a ocupação militar do país mais pobre das Américas, a serviço de Bush e das multinacionais. Os apoiadores de Lula nos dias de hoje deveriam se posicionar sobre essa mancha na história brasileira, agora continuada por Temer.

A ocupação militar (presente há 12 anos) busca suprir a fragilidade do Estado burguês haitiano. A burguesia não conseguiu estruturar uma democracia burguesa depois da derrubada da ditadura de Duvalier, como se deu na maioria dos países da América Latina depois da queda das ditaduras. Tampouco conseguiu articular forças armadas que sustentassem um regime bonapartista com o mínimo de estabilidade, perante a explosividade social do país.

O país onde houve a primeira e única revolução de escravos vitoriosa da história continua sendo um barril de pólvora que tem de ser contido por uma ocupação militar.

A realidade dessa ocupação “humanitária” é feita com todos os episódios típicos das ocupações, como a repressão brutal de um povo, humilhações, estupros etc.

 

Não se tem conhecimento de nenhuma escola, hospital ou rede de esgoto construída pelas tropas de ocupação “humanitária”. Não cumpriram nenhum papel significante depois do terremoto.

Toda essa violência está a serviço de um pequeno grupo de empresas multinacionais que ganham altos lucros com a produção de têxteis no Haiti para o mercado norte-americano.

As multinacionais se aproveitam da ocupação militar
Existe um plano econômico sendo implantado no Haiti, que tem como parte principal a implantação de duas dezenas de zonas francas com multinacionais produzindo para o mercado norte-americano. Fábricas multinacionais produzem para exportação para os EUA, livre de taxas alfandegárias e em geral também de quaisquer limites trabalhistas legais.

O objetivo das multinacionais é produzir com salários ainda menores que em outras regiões, e com repressão brutal a qualquer resistência. A existência de uma legião de desempregados – 80% da população, um enorme exército industrial de reserva – permite às multinacionais pressionar os operários empregados a aceitar as condições humilhantes de salário e trabalho. Os sindicatos são reprimidos violentamente, seus dirigentes e afiliados são demitidos assim que aparecem.

Em uma de nossas idas ao Haiti, visitamos uma fábrica de uma das zonas francas, a Codevi, em Ouanaminthe. A Codevi é uma multinacional, parte de um conglomerado dominicano (o Grupo M) ligado ao banco Chase Manhattan, que fabrica jeans para marcas famosas como Levi’s e Wrangler. Seus trabalhadores ganham US$ 48 por mês e trabalham vigiados por guardas armados.

Em Cité Soleil (em Porto Príncipe), está sendo organizada outra zona franca. Lá conhecemos os trabalhadores da Hanes, uma das mais importantes fabricantes de camisetas dos EUA. Ouvimos uma das operárias falar, indignada, sobre as condições de trabalho na empresa. Disse que elas trabalhavam 12 horas seguidas, sem direito a nenhum intervalo, nem para o almoço. A fábrica colocava cadeado nas portas para evitar o abandono da linha de produção para ir ao banheiro.

A ideologia difundida pela ocupação é que as tropas estariam no Haiti para ajudar a diminuir a pobreza do país. No entanto, essa pobreza é utilizada cinicamente pelas empresas multinacionais para produzir a baixíssimos custos para o mercado dos EUA.

Não existe água e esgoto nas casas (a não ser nas casas da burguesia, nos hotéis e no comércio). Algumas casas têm energia elétrica, que acaba todos os dias sem nenhum aviso. A maior parte dos habitantes não existe oficialmente, não tem nenhum documento. As pessoas retiram água dos poços artesianos e carregam para casa em baldes. Usam carvão para cozinhar. As pessoas andam longas distâncias a pé para não pagar transporte.

O imperialismo está fazendo uma experiência. Nas fábricas, existe uma organização do trabalho moderna, os módulos. Está instalando no país uma indústria de relativo baixo nível tecnológico, com um grau de exploração que se aproxima da barbárie. Um capitalismo moderno com claros elementos de barbárie.

Estão criando uma nova referência salarial miserável para todo o continente latino-americano, com níveis muito inferiores aos da China. As empresas pagam salários três vezes menores que os já baixíssimos salários do Brasil.

As tropas brasileiras – e dos outros governos da América Latina – estão no Haiti para ajudar as multinacionais, como a Codevi e a Hanes, a explorar brutalmente essa mão de obra barata.

Por isso, essas tropas reprimiram o levante da fome de 2008, a greve dos operários têxteis de 2009, as manifestações estudantis no mesmo ano.

As crises das “eleições”
A ocupação militar é necessária para o imperialismo porque a burguesia não conseguiu estabilizar o Estado no Haiti. A Minustah é assim, a instituição armada que assegura a dominação burguesa no país.

Essa ocupação torna as eleições uma farsa. O poder real não está na presidência da República, mas nos quartéis e embaixadas estrangeiras. Para ser preciso, na embaixada dos EUA e do Brasil. Os presidentes são apenas fantoches que fazem o que lhes mandam.

Mesmo assim, as eleições são sempre fatores de grandes crises políticas. A presidência permite o acesso às verbas do Estado e do “apoio humanitário”, em uma gigantesca rede de corrupção. Por isso, diferentes camarilhas da burguesia haitiana associada ao imperialismo disputam as eleições.

As eleições cumprem o papel de buscar canalizar o enorme descontentamento da população com os governos desgastados para eleger “novos governos”. Mas sempre geram novas crises políticas. Depois de eleitos, em pouco tempo os governos são repudiados pela população, mas seguem por serem sustentados pelas tropas.

Em 2006, ocorreram as primeiras eleições depois da ocupação. Apesar de tudo, René Préval, o candidato do presidente deposto Aristide, ganhou as eleições. Mas o imperialismo e as tropas de ocupação organizaram uma gigantesca fraude para impor, no segundo turno, dois candidatos aceitos pela embaixada dos EUA. Uma rebelião popular impediu a fraude e garantiu a posse de Préval.

No governo, Préval fez exatamente o que as multinacionais e as embaixadas dos EUA e do Brasil mandavam. Não teve jamais qualquer enfrentamento com a ocupação. Reprimiu duramente as greves operárias e as mobilizações populares. Utilizou o terremoto de 2010 para embolsar, junto com seus cúmplices no governo, uma parte do dinheiro doado para as vítimas. Privatizou as estatais que restavam e assinou a lei Hope, completando a transformação da ilha novamente em uma colônia dos EUA.

Préval terminou seu governo completamente desacreditado perante o povo haitiano. As pichações “Abaixo a Minustah” e “Abaixo Préval” eram muito comuns nos muros de Porto Príncipe.

Em 2011, na eleição de seu sucessor, Préval repetiu o mesmo figurino que se tentou fazer contra ele. Armou uma fraude para impor seu candidato, Jude Célestin. Mais uma vez, um início de rebelião popular impediu a fraude.

Isso foi aproveitado pela comissão da OEA (Organização dos Estados Americanos) que impôs, por cima da comissão eleitoral do país, um segundo turno com Mirlande Manigat (esposa de um ex-presidente) e Michel Martelly, sem a candidatura do governo. A OEA se aproveitou da crise para impor outra fraude.

Martelly ganhou as eleições, capitalizando um repúdio aos políticos tradicionais. Era um cantor muito popular, que fez sua campanha rechaçando os “políticos” e a corrupção. Mais uma farsa. Ele, na verdade, foi um tonton macoute de Duvalier desde os 15 anos, antes de se tornar artista.

Foi a volta do duvalierismo ao governo. Promoveu o retorno dos latifundiários às terras ocupadas por camponeses em uma espécie de contrarreforma agrária, com o apoio armado da Minustah.

Para completar, Martelly festejou o retorno de Baby Doc – cuja ditadura foi derrubada em 1986 – ao Haiti em 2011, vindo de seu exílio luxuoso na França. Baby Doc teve vários de seus representantes diretos como ministros do governo Martelly. Viveu junto ao governo até sua morte em 2014.

Martelly terminou seu mandato completamente desgastado. E, mais uma vez, tentou a mesma manobra, com uma fraude eleitoral para impor Jovenel Moïse como seu sucessor.

Mais um levante popular – em 22 de janeiro de 2016 – impediu novamente a fraude. As tropas da Minustah, junto com a polícia local, reprimiram duramente as mobilizações, mas não conseguiram estabilizar a situação. Abriu-se um vazio político no país, que segue até os dias de hoje.

Martelly terminou seu mandato sem que houvesse um sucessor. A embaixada dos EUA e a OEA, com a cumplicidade do Brasil, impuseram o dirigente do Senado, Jocelerme Privert, como presidente provisório até que ocorressem novas eleições. As eleições passadas foram anuladas e novas eleições foram convocadas para 9 de outubro.

O furacão forneceu um pretexto para um novo adiamento. Privert continua dirigindo o país em meio à gigantesca crise política.

A Minustah sustentou os governos de Préval e Martelly. Tentou, junto com eles, impor as fraudes eleitorais que foram derrotadas pelos levantes populares. A Minustah mantém o governo ilegítimo e fantoche de Privert. Tudo a serviço das multinacionais que dirigem o país.

Como ajudar o povo haitiano
Existe um sentimento mundial de solidariedade ao povo haitiano pela tragédia do furacão. No entanto, é necessário ter claro a experiência passada do terremoto. Não por acaso, lideranças populares advertem que: “Muito frequentemente, as verdadeiras vítimas dos desastres naturais não se beneficiam da ajuda humanitária. A ajuda anunciada vai criar novos ricos, no Haiti e em nível internacional, em prejuízo das vítimas”.

É preciso que a ajuda dos trabalhadores de todo o mundo seja entregue às organizações de luta haitianas e não ao governo fantoche.

Além disso, no dia 13 de outubro, a ONU vai votar um novo mandato para a Minustah para continuar impondo a ordem das multinacionais no Haiti.

Por isso, junto com a solidariedade, é necessário que as organizações dos trabalhadores de todo o mundo se pronunciem contra a outra tragédia que assola o Haiti, pelo fim da ocupação militar do país.

por Eduardo Almeida, de São Paulo (SP)

Publicado originalmente em www.litci.org