Fred Tomaz, de Fortaleza (CE)

Vivemos tempos de polarização. Longos debates na Internet desfazem amizades e afastam parentes. Cada lado acredita que seus argumentos são mais corretos, e que o outro lado está sendo arrogante e estúpido. Mesmo aqueles que não tomam posição são acusados de pertencerem a um lado ou outro do debate, pois não é admissível posições em cima do muro. A pergunta é sempre a mesma: você é #teamcap ou #teamironman?

Para aqueles desavisados que por acaso não gostam de histórias de super-heróis, falo do novo filme da Marvel Estúdios “Capitão América-Guerra Civil”, filme esse baseado na história criada por Mark Millar com o mesmo título. Na história original, um incidente envolvendo um grupo de jovens heróis causa a morte de centenas de crianças em uma escola, levando o governo americano a exigir de todos os heróis que se registrem junto ao governo e revelem suas identidades secretas. Nessa disputa, os heróis se dividem entre os que apoiam o registro liderados pelo Homem de Ferro e os que estão do lado do Capitão América, que são contra.

E sim, este texto é sobre política.

Mark Millar, o autor original de “Guerra Civil”, é escocês e filho de militantes trabalhistas daquele país. Em vários de seus trabalhos é possível perceber as tendências de “esquerda”, como o magnífico “Superman entre a foice e o martelo” onde ele reconta a história do último filho de Kripton caso este tivesse caído na URSS (com direito a uma versão anarquista do Batman). Guerra Civil também não fica atrás, quando escrito, em plena “guerra ao terror” criticava a política do governo Bush que retirava vários direitos democráticos nos EUA. Não que Millar seja um socialista, contudo, o cenário que ele desenhou abre uma pergunta especulativa: qual seria o lado dos revolucionários na Gerra Civil?

Primeiro, por puro exercício de imaginação, imaginemos que Super-Heróis existem, ou seja, pessoas dotadas de habilidades e poderes únicos e que se dedicam a combater o crime e defender a justiça. Aqui já começa o problema, pois a noção de crime e justiça não costuma andar juntas. Uma família que ocupa um terreno para morar comete um crime, mas será que é justiça expulsá-los a força? Ou então, governos que atacam os trabalhadores fazendo leis que tiram direitos e são depostos por mobilizações, de que lado está o crime e a justiça? Ao contrário do maniqueísmo simplista do universo Marvel, no mundo real existem classes sociais e mesmo Thor estaria submetido à luta de classes. Então, a primeira parte da resposta a pergunta de que lado se está é outra pergunta: qual o lado da classe trabalhadora?

Dito isso, vamos analisar os lados dessa disputa: do lado que defende o governo temos o Homem de Ferro, um empresário que herdou uma fortuna construída com base na indústria armamentista e que construiu uma das armas mais poderosas do mundo, sua própria armadura. Alguns podem estranhar essa posição já que o mesmo fez uma escandalosa declaração no filme Homem de Ferro 2 onde diz ter “privatizado a segurança nacional” quando se recusou entregar sua armadura para o governo por temer ela ser usada “por mãos erradas”. Aqui está a explicação de sua posição: Por “mãos erradas” entenda todo aquele que não esteja sob seu controle ou que não defenda os seus interesses, que são os interesses da burguesia internacional. Imaginem se por acaso um governo que se veja obrigado por força das massas não pagar a dívida externa tendo seu exército de homens de ferro para impedir um possível ataque dos EUA? Mas como os outros heróis não estão no controle direto do Tony Stark, logo nada melhor que o Estado, o escritório de negócios da burguesia, para controlar o uso dos poderes desses heróis para garantir que estejam sempre a serviço do interesse burguês.

Falando assim, parece evidente escolher o lado do Capitão América. Infelizmente não é tão simples. Capitão América é um soldado que defende uma grande mentira chamada “American Way of Life” (modo de vida americano), que segundo prega, todos os cidadãos precisam ter as mais amplas liberdades, especial liberdades econômicas, e o Estado deve interferir o mínimo possível na vida dos cidadãos. Esse pensamento é a base do liberalismo que faz com que hoje 50 milhões de americanos não tenham acesso a nenhuma forma de ser serviço de saúde.

O Capitão, por acreditar tanto no liberalismo, resolve ser mais coerente que a burguesia em sua própria ideologia. O que não pode, como alguns pensam, ser interpretado como uma ideologia necessariamente mais à esquerda, já que é a mesma lógica que a NRA (Associação Nacional do Rifle, em inglês) grupo de ultradireita que defende a liberação total de armas para os “cidadãos de bem”. O que o Capitão defende nada mais é que os interesses daqueles que querem continuar podendo bater e matar pequenos criminosos enquanto gritam “bandido bom é bandido morto” enquanto fecham os olhos para os verdadeiros ladrões e criminosos que ocupam cadeiras no congresso e moram em coberturas em Manhattan.

A conclusão é óbvia: Nem Capitão, nem Homem de Ferro representam uma alternativa para os trabalhadores do Universo Marvel. Na verdade, caso existissem, eles seriam parte do problema. Ambos representam, sobre prismas diferentes, saídas burguesas. Logo, a segundo coisa coerente a se dizer ante essa polarização é que ela não nos representa, e que as empresas de Tony Stark deveriam ser estatizadas sobre o controle de seus trabalhadores e que o Capitão deveria ser preso pelas centenas de mortes causadas pelas ocupações norte-americana que ele apoiou e participou, direta ou indiretamente. Fora todos eles.

Contudo, ainda resta a lei de registro, que sim, poderia atingir os trabalhadores. Imagine se existissem heróis que estivessem do lado dos movimentos sociais e sindicais. Com certeza esses seriam os primeiros a serem perseguidos pela lei e ter seu registro cassado. Na verdade, aqui representa a retirada de um direito dos trabalhadores de auto-defesa, em especial contra o próprio estado, que é justamente quem mais os ataca, como no caso do movimento Black Lives Matter.

Logo seria preciso ser contra o registro, e defesa das liberdades democráticas, de auto organização dos trabalhadores e de sua auto defesa. Isso em nada é concordar que permaneçam impunes heróis que perseguem os trabalhadores e o povo pobre, seja nos EUA seja em outros países. Para isso seria necessário que a segurança pública estivesse sobe o controle da própria população através de conselhos populares e que esses conselhos é que devem governar a sociedade. Aqui, a velha palavra de ordem dos Panteras Negras (os do mundo real, não o super herói)  se mostra mais atual: “all power to the people!” (todo poder ao povo).

Qual objetivo desse exercício tão grande de imaginação? Perceber que seja no mundo de super-herois seja no mundo real, em uma disputa entre dois lados burgueses não nos cabe escolher o lado “menos pior” e sim forjar nas lutas uma alternativa dos trabalhadores. E contra a força dos trabalhadores em luta, não existe superpoder capaz de deter.