Ativistas e moradores de comunidades carentes de Copacabana protestam nas ruas do bairro contra a Copa do Mundo e pedem o fim da violência policial nas favelas (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Os dados revelados pelo Atlas da Violência 2017, publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), causam horror e revolta em todo e qualquer um que tenha o mínimo senso de humanidade. Como também, lamentavelmente, comprovam algo que os movimentos negros têm afirmado há décadas: “jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra”.

E, no caso, o sentido da palavra “guerra” é literal. Na apresentação da pesquisa, o técnico do IPEA Daniel Cerqueira destacou que, nos cinco primeiros meses de 2017, no mundo inteiro, morreram 3.349 pessoas em 498 ataques “terroristas”. Um número de assassinatos que, no Brasil, foi ultrapassado em apenas três semanas. Já a diretora do FBSP, Samira Bueno, fez uma comparação macabra com a Guerra do Vietnã. Lá, entre 1955 e 1975, morreram 1,1 milhão de pessoas. Aqui, entre 1995 e 2015, foram assassinadas 1,3 milhão.

As vítimas desta guerra que levou 500 mil pessoas à morte em dez anos e provocou dor e sofrimento entre milhões que perderam pais e mães, filhos e filhas, irmãos e irmãs, companheiros e companheiras, amigos e vizinhos, certamente se espalharam por todos os setores sociais e localidades.

Mas há um dado particularmente estarrecedor e que revela a profundidade do racismo no país que se vende como uma “democracia racial”: de cada 100 vítimas de homicídio no Brasil, 71 são negras. E como racismo e machismo andam de mãos dadas, em 2015, 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Como é “típico” em uma sociedade que tenta “invisibilizar” os (as) LGBTs, o Atlas não fez um recorte em relação à identidade de gênero e orientação sexual, o que seria importante já que somente em 2015, segundo os dados do Grupo Gay da Bahia, 318 LGBT’s foram assassinados no Brasil.

Escalada das mortes e o “descompromisso” assassino dos governos
O perfil dos assassinos é diverso (incluindo os fardados, como veremos), contudo, por trás das armas escondem-se sempre os mesmos algozes: uma burguesia desumana e gananciosa e os governos a que lhe servem de capacho. Aqueles que impõem e adotam políticas sociais e econômicas (além de desviarem bilhões em esquemas de corrupção) que promovem a miséria, a fome, a falta de acesso à educação, à saúde, à moradia digna e tudo o mais que serve como terreno fértil para o aumento da violência e da criminalidade.

Um terreno que se tornou ainda mais tóxico e letal depois da explosão da crise, em 2008. Entre 2005 e 2007, o número de assassinatos oscilou em torno de 48 mil pessoas por ano. A partir de então, os saltos foram constantes: em 2008, foram 50.659 mortes; em 2012, houve um salto para 57.045 e, em 2015, já eram quase 60 mil.

Essa dinâmica ascendente responde a uma das lógicas mais perversas do capitalismo: sempre que há uma crise, para garantir seus lucros, a burguesia não pensa sequer um segundo para aumentar os níveis de exploração, opressão e repressão. Mesmo ao custo de milhares e milhares de vida. E o resultado não poderia ser diferente. Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, que serviu como base para a pesquisa, os 59.080 assassinatos ocorridos em 2015 (161 mortes por dia) equivalem ao homicídio de 28,9 pessoas para cada grupo de 100 mil habitantes, o que significou um aumento de 22,7% em relação a 2005, quando foram assassinadas 48.136 pessoas (ou 26,1/100 mil).

Apesar de que em alguns poucos estados houve a redução nos homicídios, o que salta aos olhos é exatamente onde o aumento foi gigantesco. O estado que registrou o maior índice foi o Rio Grande do Norte: 280,5% em relação a 2005. E como exemplo da cumplicidade do PT com esta situação, vale lembrar que, entre 2003 e 2007, o estado foi governado por Wilma Maia. Eleita com o apoio direto de Lula e considerada uma de suas principais aliadas no Nordeste, Wilma foi substituída por seu vice Iberê Ferreira, também do PSB, que governou até 2010 com o apoio de Dilma.

O fato de que todos os estados com crescimento superior a 100% nas taxas de homicídios estejam no Norte e Nordeste, para além da precariedade econômica, também diz muito sobre o perfil étnico-racial dos homicídios no Brasil. É exatamente onde há enormes concentrações de populações indígenas e negras, que os números dispararam: Amazonas (145,7%), Bahia (108,7%), Ceará (145%), Maranhão (160,7%), só para citar alguns.

É o próprio relatório que localiza a responsabilidade pelas mortes para além dos que cometeram os crimes, lembrando que esta escalada no número de homicídios “revela, além da naturalização no fenômeno, um descompromisso por parte de autoridades nos níveis federal, estadual e municipal com a complexa agenda da segurança pública”.

O genocídio sob os governos petistas
E não há o porquê (nem como) isentar o PT nesta história de “naturalização” e “descompromisso” em relação à morte de centenas de milhares de brasileiros. Pelo contrário.

Para além do fato de que eram Lula e Dilma que ocupavam o Palácio do Planalto durante toda a década pesquisada, não pode ser tratado como “coincidência” o fato de que eram petistas e seus aliados que estavam nos governos dos estados (na maioria dos anos pesquisados) onde se localizam as dez cidades com maior número de assassinato no país. Ou seja, era a Frente Popular que estava, por exemplo, no comando da Polícia Militar.

Nestas 10 cidades, os índices são superiores a 85 assassinatos para cada 100 mil habitantes, bastante superiores à média nacional de 28,9/100 mil. Altamira, no Pará, está no topo da lista, com 107,2/100 mil. Depois, seguem Lauro de Freitas (BA), Nossa Senhora do Socorro (SE), São José de Ribamar (MA), Simões Filho (BA), Maracanaú (CE), Teixeira de Freitas (BA), Piraquara (PR), Porto Seguro (BA) e Cabo de Santo Agostinho (CE).

Na Bahia, onde se encontram quatro das dez cidades, o governo estadual esteve na mão do petista Jacques Wagner durante quase toda a década (de 2007 a 2015). No Sergipe, Marcelo Déda, também do PT, governou entre 2007 e 2011, quando faleceu e foi substituído por seu vice, Jackson Barreto, do PMDB, que continua no poder.

O Ceará foi governado por Cid Gomes (agora do PROS, mas eleito pelo PSB) entre 2007 e 2015. Além de ter o apoio de Lula, Cid assumiu o ministério da Educação no governo Dilma, em um breve período, em 2015. No Maranhão, durante todo o período analisado, o governo esteve nas mãos de aliados de Lula e Dilma: José Reinaldo (PSB, de 2002-2007), Jackson Lago (PDT, 2007-2009), Roseana Sarney (PMDB, 2009-2014) e Arnaldo Melo (PMDB, 2014/15).

O caso de Altamira (PA) será abordado no próximo artigo, já que é lamentavelmente exemplar sobre as responsabilidades do PT com o genocídio. Além do estado ter sido governado pela petista Ana Júlia (entre 2007 e 2011), a extrema violência está diretamente relacionado com um dos principais e mais nefastos projetos petistas: a Usina de Belo Monte.

Pra morrer, basta ser jovem, pobre e preto
A falta de compromisso que se tem com o futuro do país fica evidente no fato de que, no período estudado, foram assassinados nada menos do que 318 mil jovens com idades entre 15 e 29 anos (92% deles, homens). Lembrando que a média nacional, em 2015, era de 28,9/100 mil; ainda em 2005 foram mortos 51,9 jovens para cada 100 mil habitantes (num total de 26.793).

Dez anos depois, a proporção já era de 60,9/100 mil (totalizando 31.264 assassinatos), o que significou um aumento de 17,7% em dez anos. E em alguns cantos do Brasil, esta proporção beira a barbárie e “grita” racismo. Em Alagoas, foram 233/100 mil; no Sergipe, a proporção foi de 230,4/100 mil e, de novo, no Rio Grande do Norte (onde o índice é 197,4/100 mil), o número de mortes nesta faixa etária disparou: entre 2005 e 2015 houve um aumento de 292,3%.

Considerando-se apenas o ano de 2015, os homicídios corresponderam a 47,8% das causas da morte de homens jovens nesta faixa etária. E quanto mais jovem, pior a situação: dentre os de 15 a 19 anos, os homicídios correspondem a 53,8% dos óbitos.

O impacto do racismo nestes assassinatos já ficou escancarado na constatação que, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Contudo, há outro dado que salta aos olhos: enquanto, entre 2005 e 2015, houve um crescimento de 18,2% na taxa de homicídio de negros, a mortalidade de indivíduos não negros diminuiu 12,2%, o que significa que, na média nacional, essa diferença contra os negros aumentou 34,7%.

E, mais uma vez, os estados do Norte e Nordeste registram os maiores saltos no número de homicídios entre negros. No Rio Grande do Norte, houve um aumento de 331,8%. No Sergipe, de 197,4%.; no Ceará, 149,7%; no Amazonas, 124,5%; no Maranhão, 123,5%; na Bahia, 108% e na Paraíba, 98%.

Também como exemplo de como o racismo, literalmente, mata, o IPEA cita outro estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (“Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade”) que constatou, em 2012, que em todos os estados do país (com exceção do Paraná), o risco relativo de um jovem negro, entre 12 e 29 anos, ser vítima de homicídio era 2,6 vezes maior do que um jovem branco[1].

A conclusão a que os especialistas chegaram ao analisar estes dados é a mesma que os movimentos negros discutem e combatem há décadas e foi sintetizada por Júlio Cezar de Andrade, diretor do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo (Cress-SP), em entrevista a Rede Brasil Atual, no dia 6 de junho: “Esse volume de óbitos, e principalmente a discrepância entre a queda na morte de brancos e aumento nos assassinatos de negros, deixa clara que a situação brasileira é de um genocídio da população negra”.

O feminicídio também é negro
Outro dado estarrecedor divulgado pelo Atlas tem a ver com o assassinato de mulheres. Apesar de uma pequena queda entre 2010 e 2015, durante toda a década estudada houve um aumento de 7,5% nos feminicídios. Somente em 2015, foram assassinadas 4.621 mulheres.

E, mais uma vez, o combinação com o racismo é fatal. Bastam alguns exemplos. No Maranhão, um dos estados mais negros do país, houve um aumento de 124,4%. E, em termos nacionais, o índice de mortalidade entre as negras aumentou em 22%, enquanto dentre as brancas houve uma redução em 7,4%.

Outro dado também é tristemente revelador em relação à violência e à crueldade que cercam as mulheres negras: “cresceu também a proporção de mulheres negras entre o total de mulheres vítimas de mortes por agressão, passando de 54,8% em 2005 para 65,3% em 2015. Trocando em miúdos, 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil no último ano eram negras”.

O relatório destaca, ainda, que os números não param de aumentar apesar de que há dois anos foi aprovada a Lei 13.104/15 (“Lei do Feminicídio”) e da existência da Lei Maria da Penha, fazendo uma observação que cheira à hipocrisia (já que o IPEA é uma fundação vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão): “Os dados apresentados (…) indicam também que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Em inúmeros casos, até chegar a ser vítima de uma violência fatal, essa mulher é vítima de uma série de outras violências de gênero, como bem especifica a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). A violência psicológica, patrimonial, física ou sexual, em um movimento de agravamento crescente, muitas vezes, antecede o desfecho fatal”.

E sabemos que o que faz com que milhares de mulheres acabem enfrentando um “desfecho fatal” vai para muito além dos muitos limites das leis. Tem início com o descaso dos governos, a começar pelo federal. Entre 2004 e 2011, o PT gastou apenas R$ 200 milhões em programas de combate à violência contra mulheres.

Esse valor representou um gasto médio anual de R$ 4.637,00 por município ou insignificantes R$ 0,26 por mulher.  Por que o PT destinou tão pouca grana para defender a vida das mulheres? Porque suas prioridades são outras: somente em 2012, foram gastos R$ 465 bilhões com os serviços da dívida. Ou seja, 2.300 vezes o orçamento do Programa de Prevenção e Enfrentamento da Violência contra as Mulheres nos 8 anos anteriores.

Em 2014, por exemplo, menos de 10% dos municípios brasileiros tinham delegacias especializadas, cujos serviços já são questionáveis e a localização e os horários de funcionamento dificultam o acesso das mais que precisam, as mulheres trabalhadoras, negras e pobres, da periferia. Já em relação às casas-abrigo a situação é ainda pior: elas só existem em pouco mais de 1% dos municípios.

Este descaso tem consequências fatais para milhares de mulheres. Segundo uma pesquisa publicada pelo Datafolha e o FBSP, em 2016, 29% das mulheres relataram ter sofrido algum tipo de violência, mas apenas 11% delas procuraram uma delegacia da mulher. E o papel nefasto cumprido pela falta de abrigos fica evidente no fato de que em 43% dos casos a agressão mais grave aconteceu dentro de casa.

Golpes fatais contra o povo preto
O fato de que todo o período estudado coincida com os governos petistas não pode ser menosprezado, como muita gente gostaria. Evidentemente, a responsabilidade não é apenas daqueles que ocuparam o Governo Federal entre 2005 e 2015, nem somente do partido de Lula e Dilma. O problema é que eles em nada se diferenciaram de todos os demais, como o PSDB, o PMDB, o DEM, o PP etc., dos quais não se esperava nada menos do que o descaso com a vida humana e a de negros e negras, em particular.

É provável, inclusive, que haja aqueles (as) que, como tem sido comum ultimamente, digam que ao sermos enfáticos na denúncia estamos fazendo coro com os supostos “golpistas”. Contudo, para nós, os terríveis dados revelados pelo IPEA são lamentáveis comprovações de algo que escutamos de uma mulher negra num debate sobre o mito da democracia racial e o genocídio da juventude negra realizado pelo Quilombo Raça e Classe, no final de 2015, na Zona Leste de São Paulo: “Finalmente, alguém disse o que precisa ser dito: quem deu um golpe na negrada foi a Dilma!”.

Para nós este é o centro do problema: a traição dos próprios princípios que o partido já defendeu e das expectativas e esperança de milhões. A cumplicidade do PT com esta quantidade bizarra de assassinatos é exemplar de muito mais do que a “naturalização” da verdadeira epidemia de homicídios que se espalhou pelo país e do “descompromisso” com a preservação da vida de centenas de milhares.

É uma cumplicidade que deriva dos compromissos políticos e econômicos que eles assumiram. Tem a ver com o próprio caráter dos governos petistas. Ao aliarem-se com os herdeiros da Casa-Grande, também assumiram a posição de capatazes e feitores ou, no mínimo, de cúmplices e testemunhos silenciosos dos exploradores e opressores de sempre. E sabemos que as únicas coisas que crescem nas sombras da casas-grande e dos pelourinhos são exploração e opressão; sofrimento, violência e morte.

Por isto mesmo, não temos dúvidas de que sob o atual governo, o do vice de Dilma, a tendência é que a barbárie avance. Afinal, os verdadeiros “sinhôs” sempre foram mais sanguinários que seus feitores. Mas, nem mesmo a balela do suposto golpe pode apagar as responsabilidades do PT. Afinal, foi o partido de Lula e Dilma que guindou Temer e uma infinidade de outros notáveis inimigos do povo pobre e negro para o poder. Gente e partidos cujas mãos sempre estiveram mergulhadas no sangue dos “de debaixo”.

Mas também é preciso se tirar alguma lição desta história trágica. A incapacidade do PT em sequer estancar o genocídio da juventude negra é prova de que não há como combater a violência ao lado da burguesia ou através de “reformas por dentro do sistema”.

A defesa da vida também passa pela construção de uma sociedade onde exatamente aqueles e aquelas que mais sofrem com a violência possam decidir sobre seus destinos. Contra a violência que brota da exploração e da opressão, também é necessário que a classe operária, a juventude, os (as) oprimidos(as) e o povo pobre governem.

[1] Segundo o Mapa da Violência, a situação é ainda pior quando se considera apenas os assassinatos com “armas de fogo”. De acordo com a pesquisa coordenada pelo sociológico e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Julio Jacobo Waiselfisz, em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), entre 2003 e 2014, o assassinato de brancos caiu em 26,1%; enquanto o número de vítimas negras aumentou em 46,9%. Ainda segundo o Mapa, o índice de vitimização negra no país em 2003 era de 71,7% (isto é, morriam, proporcionalmente, 71,7% mais negros que brancos). Em 2014, o índice saltou para 158,9%.