As cordas são apenas um aspecto do racismo no Carnaval

É um fato que, nos últimos anos, a chamada “indústria do carnaval” vem passando pelo esgotamento de um ciclo em que o modelo de blocos de trios elétricos privados diminui seu espaço diante da crise econômica e da pressão popular para que seja livre ocupação das ruas pelo povo. Uma indústria no capitalismo pressupõe força de trabalho explorada, produção, um amplo mercado de consumo e muito, mas muito lucro para uma minoria.

O carnaval de Salvador,tornou-se uma indústria (inter) nacionalizada, a partir das grandes gravadoras (Sony, Universal Music), por meio de empresários-cantores, e empresas de telecomunicações (Globo, Bandeirantes, SBT, Youtube, etc.), que ampliam seu mercado consumidor pautado na venda de “alegria”. Mercadoria esta, que encontrou no “mito da democracia racial”, o apoio para uma produção cultural distorcida, apropriando-se de elementos das religiões afro-brasileiras, do timbal, dos agogôs e atabaques, para incorporar em seu produto uma falsa imagem harmoniosa, e até mesmo mística, das relações raciais na cidade que tem a maior população negra do Brasil.

Este ano, os principais meios de comunicação, através de artistas renomados, do prefeito ACM Neto (DEM) e do governador do Estado Rui Costa (PT), têm divulgado insistentemente que finalmente “retornamos aos carnavais das origens”, na medida em que aumentam o número das atrações de trios elétricos sem cordas. Mas será que a tão denunciada segregação entre os de dentro dos blocos (brancos) e os de fora dos blocos (negros) diminuem junto com o aumento de trio elétricos sem cordas? Será que a “indústria do carnaval” perdeu sua capacidade lucrativa para uma festa com mais atrações “gratuitas” nos espaços públicos?

Nós, negros e negras, bem sabemos que não. Para uma parte significativa das negras e negros da região Metropolitana de Salvador, o “fuzuê e furdunço” começaram bem antes do que as festas antecipadas, criadas por ACM Neto, como estratégia de reorientar a produção desta “indústria”. A humilhação das filas para conseguir a licença para comercializar produtos no circuito de carnaval, as noites dormindo nas ruas da festa para guardar a mercadoria durante quase 15 dias, as constantes revistas da SEMOP (Secretaria Municipal de Ordem Pública) e Guarda Municipal para garantir que seja comercializada a cerveja da empresa que comprou o espaço público (Schin), escancaram a realidade omitida pela grande imprensa. Ainda, as cordas (que não são poucas) seguem erguidas por mulheres negras e jovens negros, que recebem R$ 50,00 ao dia, expostos a condições indignas para um ser humano, que não sendo suficiente ainda se dividem muitas vezes catando latinhas no chão. E nos camarotes, dos luxuosos aos mais acessíveis, são negros e negras que garantem a segurança, alimentação e limpeza, em cenas que não deixam nada a dever ao Brasil Colonial.

Para uma outra parte dos negros e negras que se “aventuram” na folia, nos circuitos de mídia televisiva, as ruas têm se tornado um espaço cada vez mais hostil durante o Carnaval. Seja pelos olhares de desconfiança de furtos, seja pelos abusos e assédios às mulheres “da cor do pecado”, seja pelas humilhantes abordagens da PM. Apesar dos desejos de um “Carnaval de paz em que todos se divirtam” na abertura da festa,sabemos que, para o chefe da Polícia Militar, Rui Costa (PT), esta paz está condicionada à classe, cor, gênero e renda.

Aliado à segregação dos espaços públicos, gerenciados pela prefeitura, o esquema de (in) segurança da PM de Rui deixa “claro” quem são os tipos suspeitos no meio da multidão e que devem ser abordados para garantir “a paz”, fato já amplamente explicado nas mídias pela cúpula da PM. Com o desfile dos trios sem cordas, com as “estrelas do axé”, e a atração de grande parte de jovens negros da periferia nestes circuitos, os detectores de metal utilizado pela PM nos portais de entrada dos circuitos, já tem seu direcionamento definido.

Esse é, desgraçadamente, o lugar da imensa maioria dos negros e negras na “indústria da alegria”. Seguem sendo os pilares para a retomada de um novo ciclo de lucros, a partir de novos modelos de negócios que conservam a mesma essência exploradora, se distanciando do seu caráter originalmente popular e ganhando contornos cada vez mais lucrativos, racistas, machistas e homofóbicos. Como qualquer negócio no capitalismo, a dinâmica do “mercado” demanda alterações na produção, mas isso não significa pobreza, perda significativa de lucros, nem mesmo falência dos empresários; apenas deixaram precisam manter e/ou superar suas metas. As cifras destinadas a grandes atrações, a exemplo de Bell Marques e Ivete Sangalo, se contradizem com o financiamento destinado às atrações negras e populares, expondo a farsa do termo “festa popular” na boca de Neto e de Rui.

É a lógica que impera em governos aliados das elites, como o do DEM e do PT: uso do dinheiro público para garantir infraestrutura que beneficia as empresas dos artistas, grandes cervejarias, companhias aéreas,  grandes redes internacionais de hotéis, etc., tudo aquilo que reforça o caráter segregador que as elites imprimiram na folia. É por isso que a diminuição das cordas não diminui o racismo. Não há verdadeira democratização onde negras e negros são explorados, precarizados e humilhados.

É preciso garantir um carnaval verdadeiramente popular, sem as cordas físicas, nem opressoras do racismo e do machismo perpetradas pela PM. Um carnaval cujo espaço público não seja negociado com nenhuma empresa, como continua fazendo ACM Neto, mas ao contrário seja livre ao público, com participação verdadeiramente do povo e dos trabalhadores desta cidade na organização e execução da festa de rua.

Por fim, a valorização do povo negro precisa ultrapassar as letras de músicas que embalam a folia, é preciso reparação histórica imediata, que inclui dentre outras questões a inversão dos montantes de investimento público, das empresas para o desenvolvimento da cultura negra e popular. Só assim é possível avançar para que esta festa, originalmente pertencente à nossa classe, reproduza uma realidade condizente a uma sociedade construída pelos negros e negras oprimidos e demais trabalhadores: sem exploração e sem racismo, pois é isso que merecemos, usufruir plenamente da verdadeira alegria, roubada e perseguida há mais de 400 anos!