Há vários dias, o Senhor Sigernando Souza tentava atendimento para o seu filho no Hospital de Salgueiro (Sertão de Pernambuco). Paulo Sigernando, de 14 anos, vinha reclamando de fortes dores na garganta, dificuldade para engolir e respirar, febre e inchaço na região do pescoço.

Seu Sigernando, vendo o filho ir e voltar do hospital sem atendimento, após horas de espera por vários dias, desesperou-se, quis brigar, exigiu na marra atendimento. Quando finalmente foi atendido, o jovem já estava em um estado muito grave e veio a falecer dias depois. Uma lida rápida no prontuário do filho de seu Sigernando atestava: quadro clássico de difteria.

Sigernando, trabalhador rural pacato que teve que ameaçar brigar para que algum profissional de saúde atendesse seu filho caçula na recente inaugurada unidade de saúde de Salgueiro, após a morte de Paulo, foi procurado em casa pelas autoridades do município, por um batalhão de doutores e até pelo pessoal da televisão.

Finalmente, queriam saber da vida daquela família de trabalhadores rurais do interior de Pernambuco. Mas já era tarde. O problema é que seus outros filhos, os gêmeos Cosme e Damião de Souza, de 19 anos, também estavam com os mesmos sintomas do jovem Paulo e, agora, os políticos do PSB, para evitar o escândalo, começaram uma correria para levar os rapazes para Recife. Parecia até que tinham cometido um crime, até a Polícia Militar foi mobilizada para transferir os jovens.

Segundo a Secretaria de Saúde do estado, já foram notificados esse ano nada menos que 18 casos de difteria, quatro já confirmados na cidade de Chã Grande (Zona da Mata) e outros 14 em investigação. Incluindo os filhos de Sigernando.

A doença estava praticamente erradicada no Brasil a partir dos anos 2000. Em Pernambuco, o último óbito por difteria ocorreu em 2003, no Recife. A difteria é causada por uma bactéria que produz uma toxina e atinge o sistema respiratório e pode causar complicações cardíacas. É transmitida em geral pela respiração.

A enfermidade passou a ser combatida no Brasil no início da década de 1970, quando foi instituído o Programa Nacional de Imunizações, que também combate doenças como tétano, coqueluche, sarampo, rubéola, meningite e hepatite. Nas décadas de 1980 e 1990 os casos começaram a diminuir no país.

Ironicamente, um ano antes da morte do jovem Paulo Sigernando, houve festa em Salgueiro com direito a presença do Secretario de Saúde, do ex- Governador Eduardo Campos e vários políticos do PSB para a inauguração de mais uma UPA, administrada por uma fundação privada como são praticamente todas as unidades de saúde do estado hoje.

Se, depois de tantas UPA’s e hospitais regionais inaugurados, a difteria, doença do século XIX, considerada praticamente erradicada no Brasil, volta com casos confirmados no Sertão, Zona da Mata e Recife, tem alguma coisa de muito podre na Saúde de Pernambuco.

Hoje, conselhos de profissionais de saúde, entidades sindicais, especialistas, os deputados da chamada oposição de direita no estado e até o deputado do PSOL falam largamente da crise da saúde do estado, mas sempre a partir de um viés meramente administrativo de falta de verba e de médicos. Nada que um aporte financeiro e algumas contratações não possam resolver, diagnosticam.

A crise de fato é muito séria. Desde o início do ano, triplicou o número de pessoas esperando vagas em leitos de UTI no estado e, para piorar a situação de verdadeira barbárie, nada menos que cinco das maiores emergências reduziram pela metade ou fecharam completamente os leitos de emergência e UTI’s.

Em quase todas as UPA’s da Região Metropolitana do Recife, o atendimento foi drasticamente reduzido e várias unidades vão encerrar completamente o funcionamento por falta de profissionais, que estão sendo demitidos “para cortar gastos”, já que a maior parte do corpo funcional da saúde estadual é composta por contratos temporários.

Sim, os cortes que o governo Dilma do PT vem fazendo na Saúde influem diretamente na crise, e a chamada “temporada de ajustes” do governo Paulo Câmara do PSB também tem responsabilidade direta. Mas chegou a hora de questionarmos o modelo que se instituiu, e nos rebelarmos contra ele. Nossas vidas, literalmente, dependem disso. Seu Sigernando que o diga.

Giovanni Berlinguer, sanitarista italiano que faleceu em abril deste ano, considerado inspirador do Movimento Sanitarista no Brasil e que é hipocritamente ainda reivindicado por técnicos do PT e do PSB que dirigem a saúde em nível federal e local, em um dos seus últimos escritos, identificava um retrocesso mundial em relação às conquistas em saúde pública.

Retrocesso que surgiu com a onda neoliberal dos anos de 1990 e que acabou assimilado e naturalizado pelos governos ditos de esquerda na América Latina nos anos de 2000. Os paladinos do Movimento Sanitarista e do SUS dos anos de 1980, ao chegarem ao poder, transformaram-se em agentes da saúde privada, meros administradores neoliberais.

Se, em nível mundial, a Organização Mundial de Saúde, por seus defeitos intrínsecos e pelo desinteresse dos governos, perdeu a função de guia nas políticas mundiais de saúde, de modo que o poder e as influências, neste campo, passaram totalmente ao Banco Mundial e ao FMI, no Brasil e em Pernambuco em particular, os conselhos e conferências de saúde perderam totalmente qualquer poder de decisão ou influência.

A idéia de saúde como fundamento e direito e, sobretudo, como finalidade primordial do crescimento econômico foi universalmente substituída pela idéia oposta: que os serviços públicos de saúde e a generalização dos tratamentos são obstáculo, e muitas vezes principal obstáculo, para as finanças públicas e para o desenvolvimento da riqueza. É assim que o maior imperativo de qualquer governo passa a ser a redução das despesas com saúde. Dilma e Paulo Câmara não deixam dúvida sobre isso.

O modelo que atribuía à atenção primária de saúde função preventiva e terapêutica essencial foi substituído pela tendência a desmontar os mecanismos de intervenção pública, a atribuir, mesmo onde os recursos são mínimos, prioridade a tecnologias dispendiosas e reservadas a pouquíssimos privilegiados; a substituir os serviços comunitários por seguros particulares. Tudo exatamente como se dava na Europa do século XIX! A luxuosa festa de inauguração da UPA de Salgueiro que antecedeu a morte do jovem Paulo por difteria em Pernambuco não poderia ser mais emblemática.

Em Pernambuco, o governo do PSB desmontou toda a rede de atenção básica (postos de saúde), sucateou as grandes emergências diminuindo as especialidades ao ponto de atendimentos em ortopedia, cirurgia geral, neurologia terem sido praticamente extintos no serviço público do estado, e criou uma rede de UPA’s montadas em beira de BR, distantes dos centros urbanos e sem nenhuma estrutura para atendimento mais complexo.

Essas unidades são todas administradas por fundações privadas que abocanham grande parte do orçamento estadual e impõem um modelo de gestão baseado em contratos temporários agenciados por critérios eleitoreiros.

Infelizmente, as entidades sindicais dos trabalhadores da saúde no estado, dirigidas em sua maioria pelo PT e PCdoB, por motivos óbvios, não estão dispostas de questionar a fundo o modelo privatista implantado pelo PT e PSB no estado. Calam-se diante dessa calamidade, não buscam se aproximar da população usuária e menos ainda mobilizar os trabalhadores de sua base. Repetem críticas pontuais e até fraternais sobre verba e contratos.

Tal como nos anos de 1980, é preciso um verdadeiro Movimento em Defesa do SUS, uma nova Reforma Sanitária, contra a política excludente e privatizante do PT e do PSB, que unifique a luta dos trabalhadores da saúde com a população usuária, que atraia intelectuais e especialistas para essa mobilização e que construa novas direções para as entidades dos trabalhadores.

Como dizia Berlinguer: “Se não se inverter a tendência, um duplo conflito há de se agravar para todos nós e para a sociedade em que vivemos. Conflito entre a moral e a atividade prática quotidiana: por um lado, ser chamado e obrigado a reparar, tardia e insuficientemente, os danos previsíveis e preveníveis causados à saúde e à integridade humana; por outro, ter de fazê-lo com meios técnico-científico mais aperfeiçoados, sim, mas em condições social e economicamente mais difíceis, com recursos e apoio públicos menores. Pode-se até ser chamado a decidir, entre esta e aquela pessoa, a quem cabe ou não viver. Abismo moral, para profissões e atividades originadas e desenvolvidas para trabalhar a favor de todas as vidas humanas, e drama para quem tiver de governar em tais condições os destinos da coletividade”.