Foto aérea do bairro de Lagomar

Localizada na região do Norte Fluminense do Rio de Janeiro, Macaé tornou-se mundialmente conhecida por conta do petróleo. No Brasil, Macaé é chamada de “capital do petróleo” devido à instalação da Petrobrás e de inúmeras empresas nacionais e multinacionais em seu território.

Nos últimos 40 anos, Macaé recebeu milhares de trabalhadores de todos os lugares do Brasil e do mundo, atraídos pelas oportunidades de emprego na indústria do petróleo. Mas hoje, Macaé está diferente. Poucos na cidade têm o que festejar.

A crise econômica mudou a cara da cidade, e os trabalhadores da capital do petróleo entraram em 2016 com muitas incertezas sobre seu futuro. Neste breve texto relatarei como foi o final de ano na capital do petróleo para uma família de trabalhadores da periferia da cidade.

O Natal e o ano novo num bairro operário
No capitalismo, o período de festas é a última oportunidade do ano de lucrar com a fraternidade e a esperança das pessoas. Na lógica da burguesia, no Natal, o afeto entre as pessoas deve ser demonstrado por presentes, e quanto mais caro eles forem, melhor. Já a virada de ano significa um convite ao esquecimento. O transporte público é uma droga? As filas nos hospitais são imensas? O preço dos remédios é absurdo? O preço da comida está nas alturas? O desemprego bate à porta? Tudo isso, como num passe de mágica, deve ficar para trás com a virada do ano. Parece proibido lamentar por todas essas mazelas, restando apenas a resignação e a gratidão por simplesmente estar vivo e a esperança de que o próximo ano seja melhor. Mas esse ano, a realidade parece dura demais para ser esquecida tão facilmente.

Costumamos dizer que existem em Macaé duas cidades em uma só. Os números mostram que, da “ponte pra baixo” (Centro, Imbetiba, Praia Campista, Bairro da Glória, Cavaleiros, Mirante da Lagoa) há uma Macaé mais branca e com rendimentos muito acima da média brasileira. Da “ponte pra cima” (Barra, Nova Holanda, Fronteira, Parque Aeroporto, Barreto, Engenho da Praia, Ajuda e Lagomar) há uma Macaé mais negra, com menores rendimentos embora com mais horas trabalhadas. Do lado de lá, os imigrantes são norte-americanos e europeus tratados “a pão de ló”. Do lado de cá, os imigrantes são nordestinos e nortistas, que com o suor de seus rostos lutam por uma vida mais digna nessa cidade que lhes oferece o pão que o diabo amassou.

Eu e minha família estamos na parte negra de Macaé, mais precisamente no bairro Lagomar, um dos bairros mais populosos de Macaé e mais afastados do centro da cidade. O Lagomar foi o bairro que mais cresceu nos últimos anos, batendo a impressionante marca de 232,5% de crescimento entre 2003 e 2007. É reconhecido por ser um bairro com muitos trabalhadores da indústria do petróleo e reduto de muitos nortistas e nordestinos.

É véspera de natal. O sol está de rachar e, segundo a jornalista na TV, a temperatura na cidade ultrapassará os quarenta graus. É preciso ir ao supermercado para comprar as coisas para a ceia de natal. Há um supermercado que fica na estrada e que vende no atacado e, às vezes, é mais barato ir nele. No entanto, ficar quarenta minutos à espera de um ônibus embaixo do sol é humilhante demais para qualquer um, por isso decidimos ir a pé no supermercado do bairro.

O supermercado está superlotado! A crise não deixa barato. Comprar peru, nem pensar. O quilo da ave está nas alturas e o jeito é comprar um frangão, três vezes mais barato. A venda de carne de porco aumentou e os carrinhos vão cheios de pernil. Coloco três garrafas de um refrigerante que nunca bebi, mas que é o mais barato. Arroz, feijão, açúcar… a regra é uma só: levar o que for mais barato!

Na fila da carne, as piadas sempre mencionam a tal da “crise”. É o que diz o homem que comprou quatro quilos de salsicha e seis de carne moída. E é, também, o que diz a mulher para as filhas ao justificar a ceia mais pobre dos últimos anos.

A fila do caixa é enorme e exige paciência. Então, nada melhor do que conversar. E sobre o que conversar? Calor, comida e… política! E neste tópico, não tem conversa que não inicie ou termine falando mal da Dilma e do seu governo. A classe tá injuriada, porque sabe que foi enganada. Um senhor com o saco de carvão disse que “a vaca tá tossindo até agora”, referindo-se ao compromisso eleitoral de Dilma de não mexer nos nossos direitos. Uma senhora à minha frente disse coisas impublicáveis sobre o governo e a presidenta, e seguiu reclamando do aumento no preço das coisas.

Comer está perigoso! O valor da nossa compra foi um absurdo e a alegria de pôr comida na geladeira pro Natal e ano novo dá lugar a uma ponta de angústia por saber que ultrapassamos o pouco que tínhamos.

Voltamos a pé para casa, com sacolas nos braços e em nossos carrinhos. No meio do caminho vemos o caminhão pipa chegando para abastecer a caixa d’água da rua. Aceleramos o passo para não perder essa oportunidade, pois a água para cozinhar já estava acabando. A nossa mãe fica em casa guardando as compras, enquanto eu, minha irmã e meu irmão catamos garrafas pet, baldes e garrafões para trazer água.

É preciso ser rápido, porque a fila da água vai aumentando a cada minuto! Crianças correndo, homens de bicicletas, mulheres com carrinhos de mão… todo mundo quer garantir um pouco de água limpa para tomar banho e, principalmente, para cozinhar. Não tem água encanada no Lagomar pra todo mundo e cada família se vira como pode, abrindo poço ou estocando água.

É impossível não sentir revolta por tudo isso! Como é possível, em pleno 2016, numa cidade que extrai petróleo a centenas de metros de profundidade, não ter água encanada num bairro populoso como o Lagomar?

Voltamos com nossos baldes e garrafas de água. Essa água terá que durar até o ano novo, pois o motorista do caminhão pipa avisou que só retornará em 2016. Ela é mais clara do que a do poço, mas nada, além disso, indica que seja realmente limpa.

Há três anos, o então prefeito Riverton Mussi (PMDB) inaugurava, junto ao então governador Sérgio Cabral (PMDB), a UPA do Lagomar e jogava água de mangueira na população que assistia a inauguração, prometendo água encanada em todo o bairro. Dois meses depois o vencedor das eleições para a prefeitura, Dr. Aluizio (PV), prometia mudar essa situação. Vale lembrar que Dilma (PT) apoiava Cristino Áureo (PMDB) e Dr. Aluizio (PV) para a prefeitura de Macaé mas, para nós, a única coisa que mudou foi a legenda do prefeito que agora está no PMDB.

Desemprego: uma conta que os patrões jogam nas costas dos trabalhadores
A nossa noite de Natal foi mais vazia do que de costume. Meu primo Robson passaria com sua família o Natal lá em casa, mas embarcou às pressas e só retornaria em 2016. Ninguém gosta de passar o período de Festas embarcado, mas com tanta demissão ele se sentiu aliviado por ter mais um embarque para fazer.

Meu outro irmão, Gerson, trabalharia até tarde no dia 24, pois reduziram o quadro de funcionários de sua empresa, e não conseguiria ônibus para vir com a família para o Lagomar. A SIT (Sistema Integrado de Transporte) diminuiu o já reduzido número de ônibus para o Lagomar e, todo o dia, nos condena em terra ao inferno escaldante de ônibus sempre lotados.

O “desemprego” é a palavra mais ouvida em Macaé. Abro o Facebook e todo dia vejo algum amigo postando em sua linha do tempo uma mensagem informando que fora demitido. Só num prédio que prestava serviços em áreas administrativas para embarques na Bacia de Campos foram 1.200 demitidos em setembro, numa tacada só! Todo mundo tem algum parente ou amigo que perdeu o seu emprego em Macaé e lá em casa não é diferente. Renata, minha cunhada, foi demitida há dois meses e também trabalhava num escritório de administração. Felipe, um dos meus primos, trabalhava há oito anos numa empresa que prestava serviço para a Petrobrás que deu férias coletivas para todos. Já resignado, ele disse que é certo de que ao fim das férias coletivas todos serão demitidos.

Minha prima Luísa está apreensiva, também. Ela tem um filhinho de quatro anos, e comprou recentemente uma casa pelo “Minha casa, minha dívida”. Seu marido Vitor fez o último embarque pela empresa que trabalha neste natal. Luísa trabalha no setor administrativo de uma empresa multinacional que já demitiu milhares de trabalhadores. Ela mesma confessou que está numa comissão responsável por “enxugar” os quadros terceirizados que prestam serviço à sua empresa e que, acima dela, realizaram duas comissões para reduzirem o pessoal administrativo e os trabalhadores das plantas de operação. Pergunto-lhe sobre o sindicato e descubro que ele é ligado à Força Sindical e está do lado da empresa prestando todo apoio às demissões.

Por último, nossos parentes da Zona Norte do Rio que viriam para o Natal adiaram a viagem e disseram que só viriam no dia 30. Minha tia Beth falou ao telefone que meu tio Rubens está doente e vão esperar ele melhorar para viajar. Meu tio Rubens é aposentado, mas trabalha há anos numa das inúmeras empresas nos estaleiros de Niterói para complementar a aposentadoria e recebeu, em dezembro, férias coletivas sem pagamento dos atrasados e nem o décimo terceiro. Minha tia conta que após isso ele ficou muito abatido e acabou adoecendo e como ele já é idoso, o cuidado precisa ser redobrado.

A situação por lá também está feia. Seu genro, marido da minha prima Ivete, é servidor do estado e teve o décimo terceiro parcelado pelo Pezão (PMDB) e como todo mundo mora no mesmo endereço, as coisas apertaram de uma vez só.

Meus primos nunca foram muitos ligados em política, e por isso fiquei um pouco surpreso ao ver como eles sabem de todos os ataques recentes do Governo e dos patrões aos nossos direitos. Dois ataques em especial foram mencionados repetidamente: o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), elaborado com apoio da CUT, UGT e Força Sindical, que reduz em 30% os salários de operários e utiliza o dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para garantir os lucros das grandes empresas em crise. O segundo ataque é a alteração das regras do seguro-desemprego, a partir da MP 665. Agora, para acessar o benefício pela primeira vez, o trabalhador precisa ter trabalhado 18 meses de carteira assinada ao longo dos últimos 24 meses.

Defender a Dilma (PT) e seu governo por aqui não é nada fácil. “A vaca morreu engasgada de tanto tossir”, disse meu primo Róbson. Falo para ele e para Luísa que essas empresas escondem a contabilidade dos trabalhadores e que parte delas segue lucrando muito e remetendo dinheiro para as sedes no exterior. Falo também sobre a experiência dos operários da Volkswagen e da GM que, ao terem, cada uma, 800 operários demitidos, pararam a produção e conseguiram reverter as demissões. Seus olhos brilham, mas logo depois, suspiram pensando quão difícil isso seria por aqui. Disseram que apoiavam a greve da Petrobrás, mas que seria bom se todo mundo parasse. Explico a eles o papel da CUT e da Força Sindical e eles se revoltam ao entenderem a traição dessas entidades aos trabalhadores. Defender que é preciso pôr para fora todos esses políticos é fácil e é o básico ao olhos deles.

Virar um ano ruim e entrar num ano de incertezas
Em Macaé existe um apartheid silencioso, mas doloroso. A cidade é dividida por uma ponte que, a bem da verdade, divide a cidade em bairros mais negros e pobres e bairros mais brancos e ricos. Para quem mora em bairros como o Lagomar, Aeroporto, Ajuda e Barra, o acesso às praias com orlas e ao centro da cidade é controlado à conta-gotas pela SIT, com a conivência da Secretaria de Mobilidade Urbana da Prefeitura. É comum esperar de 40 minutos a 1 hora por um ônibus, cujo preço da passagem é altíssimo. Além disso, a partir das 23h os ônibus somem das ruas, restando à população voltar literalmente a pé pra casa. A sensação é de que somos encarcerados em nossos bairros.

A certeza de que há um apartheid em Macaé é dada pela polícia. Na tarde do dia 29 de dezembro, várias pessoas vão às ruas protestar pelo sumiço de Wellerson Teixeira, um jovem do bairro, que desapareceu na madrugada do dia 26, segundo relatos, durante uma operação da PMERJ. As ruas do bairro amanhecem, no dia 30, com as marcas das barricadas de madeira queimada no chão. Muita gente ainda tem na memória o assassinato de três pessoas, em abril, nas Malvinas pelas mãos da pela PMERJ sob a alegação de serem bandidos. Soma-se a isso, o assassinato de cinco jovens negros no Rio de Janeiro, em novembro: após metralharem o carro com os cinco jovens, os policiais tentaram forjar uma cena em que os jovens teriam atirado e eles teriam apenas reagido.

Como de costume, o protesto é usado como desculpa para aumentar a repressão policial e diminuir a circulação de ônibus no bairro.

Por tudo isso, deixar 2015 deveria ser motivo de alegria. Mas a suspeita de que as coisas ainda podem piorar requer moderação. A revolta na periferia de Macaé está cada vez mais latente, embora desorganizada e difusa. Diante da miséria, da exploração e da opressão, as igrejas neopentecostais crescem nos bairros pobres e tentam canalizar a angústia do povo nos cultos barulhentos, apelando ao conformismo perante a desigualdade social e alimentando um crescente ódio às religiões de matrizes africanas. Só na minha rua existem três igrejas desse tipo. Como não poderia deixar de ser, a maioria esmagadora dos que frequentam essas igrejas são negros. Eles dançam, cantam e gesticulam expressando a sua negritude, mas são adestrados a repudiar as religiões de matrizes africanas que, por sinal, tem como último forte reduto na cidade o próprio bairro do Lagomar. Essa contradição dramática só poderá ser resolvida a partir de uma perspectiva de raça e classe.

Como era esperado, a virada do ano foi bem comedida: pouca gente na praia e nas ruas. Afinal, o que os trabalhadores desejam para 2016 (saúde, trabalho, comida na mesa e paz) parece mais difícil do que o de costume de se realizar. Será preciso alimentar a autoconfiança da nossa classe e criar uma saída classista para essa situação, porque depois de todos esses anos de governo do PT a raiva dos de baixo está só aumentando.