Manifestação na Unicamp por cotas
Parintins Lima, da Secretaria de Negras e Negros de Campinas (SP) e Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação

O 30 de maio de 2017 entrou para a história das lutas de negras, negros e indígenas como o dia em que foi arrancada, na luta, a política de cotas étnico-raciais em uma das universidades mais conservadoras, elitistas e, consequentemente, racistas do Brasil: a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Essa conquista é fruto da greve de 2016 de estudantes e trabalhadores, que culminou na ocupação da reitoria e que, para além da luta contra os cortes orçamentários que afetam as universidades brasileiras como resultado das políticas neoliberais, colocou no centro de suas reivindicações a defesa das cotas étnico-raciais e políticas de permanência.

Contudo, não se pode separar essa vitória na Unicamp da história de lutas de negras, negros e indígenas principalmente das últimas décadas. Tanto no interior da própria Unicamp quanto Brasil afora.

O resultado de uma onda de lutas
Na universidade, essas lutas se refletiram num intenso processo de organização, que resultou na formação de coletivos de negras e negros e, principalmente, do Núcleo de Consciência Negra e da Frente Pró-Cotas da Unicamp, que estiveram à frente do Festival/Ato por Cotas na Unicamp, nos dias 29 e 30 de maio, que teve como ponto alto a formação de um verdadeiro quilombo que cercou o Conselho Universitário (CONSU) no dia votação, com cerca de 600 ativistas, inclusive de organizações políticas e dos movimentos negro, sindical e popular da cidade e de outras partes do estado.

Em termos nacionais, a vitória da Unicamp é um resultado de décadas de lutas, que já tinham conquistado cotas em diversas universidades estaduais e fizeram com que o governo Dilma adotasse, em 2012, cotas nas federais.

Trata-se de mais um exemplo da onda de lutas que têm varrido o país (como a Greve Geral e o Ocupa Brasília, mais recentemente) e questionado a tese de que estamos vivendo uma suposta onda conversadora que serviria como uma barreira intransponível para lutas e vitórias.

De forma muito especial, essa vitória também reflete as lutas negras e indígenas que temos visto nos últimos anos, com o aumento da consciência negra e não-branca. Lutas que têm desafiado o mito da democracia racial e sacudido não só o Brasil, como demonstram as mobilizações de negros (as) e imigrantes nos Estados Unidos.

Contra as cotas, só os racistas!
O fato de que a votação do CONSU ter sido unânime, apesar dos muitos discursos que tentaram adiar a votação mais de uma vez, é o melhor exemplo da força destas lutas. Mas não podemos deixar de citar a conquista, como já era de se esperar, veio acompanhada de manifestações reacionárias e racistas, a exemplo da mais asquerosa delas, dada pelo professor Paulo Palma, da Faculdade de Ciências Médicas.

Em uma postagem no Facebook, Palma escreveu: “com a resolução aprovada hoje e com tantos cotistas ingressando na Unicamp, sugiro mudança de nome desta universidade para Escola Estadual de Terceiro Grau Zeferino Vaz. Próximo passo será cotas para ingressar na carreira docente”.

O caráter fascistóide do professor fica evidente, inclusive, no nome proposto. Zeferino Vaz foi fundador da Unicamp e o fato do campus levar seu nome já é uma vergonha. Vaz serviu, na ditadura, como reitor-interventor da Universidade de Brasília e já foi denunciado como responsável por violações de direitos humanos de estudantes, funcionários e professores. E, se isto não bastasse, esse arremedo de Donald Trump ultrapassou os níveis do ridículo e do patético ao finalizar sua postagem em inglês: “Let´s make Unicamp great again” (“vamos tornar a Unicamp excelente de novo”).

Vale dizer também que, em relação a cotas para o ingresso na carreira docente, a que o professor faz referência, já foi aprovada a Lei 12.990 de 2014, que reserva aos negros e negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos federais. Um índice que além de não corresponder à realidade étnico-racial do país, ainda está muito longe de ser atingido, já que, hoje, somos, no máximo, 14% ocupando estes cargos.

E, no caso das universidades e institutos federais, o percentual é ainda menor: apenas 7%. Nesse sentido, a Unicamp precisa, sim, de cotas também para a carreira docente, uma vez que hoje, quase 100% de seu quadro docente é de professores brancos.

Muita luta pela frente
Esses índices são exemplares da necessidade das cotas, bem como dos limites das leis federais. Em 2005, apenas 5,5% dos jovens classificados como pretos ou pardos pelos IBGE (que, para nós, são todos e todas negros/as) frequentavam uma faculdade. Em 2015, este índice subiu para 12,8%. O que ainda equivale a menos da metade dos jovens brancos que, em 2005 eram 17,8% e, dez anos depois, subiram para 26,5%. E, como se sabe, a maioria de nossos irmãos e irmãs estão em instituições privadas.

Por isso mesmo, a vitória da Unicamp vai muito além da própria universidade. Ela joga um entusiasmo redobrado na luta por políticas de ações afirmativas. Não só na graduação ou para negros e negras. No movimento já existe a reivindicação de cotas para transexuais e para os programas de pós-graduação. Como também, pelo fim do vestibular, um sistema meritocrático e excludente.

De imediato, na Unicamp, assim como em outras universidades que já têm cotas, é preciso intensificar a luta por permanência (como bolsas para moradia e alimentação, já que a maioria do nosso povo está nas periferias, tem os maiores índices de desemprego, os menores salários etc.). Também na universidade, há outra luta emergencial: reverter as punições racistas e absurdas (com suspensões de até um ano) que atingiram os grevistas de 2016.

Pra cima da USP!
A vitória conquistada no dia 30 já teve um reflexo imediato: a intensificação da luta na única universidade pública paulista que disputava com a Unicamp o título de mais racista: a Universidade de São Paulo (USP), que só pode ser considerada uma Casa-Grande.

Para se ter uma ideia, basta citar um dado de 2013: naquele ano, as três carreiras mais concorridas no vestibular da universidade (Medicina, Engenharia Civil em São Carlos, e Publicidade e e Propaganda), nos quais foram matriculados 369 estudantes, não tiveram nenhum aluno negro.

Um sintoma lamentável do racismo que corre solto na USP, onde o número de estudantes negros ou negras não chega a 7% e o de professores equivale a 0,9%. Isto apesar das lutas incessantes, principalmente a partir de 1987, quando foi fundado o Núcleo de Consciência Negra. Mas o entusiasmo despertado pela vitória na Unicamp pode ser exemplificado pelo fato de que uma plenária convocada para o dia 5 de junho já conta com a confirmação de mais de 200 pessoas.

Aquilombar pra reparar!
Não é uma coincidência que as universidades que mais têm resistido à inclusão de negros, negras e indígenas estejam no estado que concentra o grosso da burguesia brasileira que, como sabemos, além de branca, é masculina e heterossexual.

Como já disse Malcolm X, “não existe capitalismo sem racismo”. Apesar de sabermos que a conquista de cotas está longe de acabar com o racismo, também estamos convictos de que qualquer vitória neste campo é parte fundamental da luta contra o sistema que, desde sempre, se apoia na opressão (étnica, racista, machista e LGBTfóbica) para explorar ainda mais os setores que têm sido historicamente mais violentados pelo capitalismo.

Por isso mesmo, acreditamos que só conquistaremos todos os direitos e a igualdade que merecemos com a destruição deste sistema. Algo que, no nosso entender, começa por um processo de aquilombamento das universidades, no sentido que foi dado pelos nossos(as) ancestrais.

Os quilombos foram exemplos da possibilidade de contestar o próprio sistema socioeconômico em que se vive. Foram exemplos de independência política contra os governos e suas políticas. Contra os regimes que exploram e oprimem.

Mas, para avançar nesta luta, é preciso que resgatemos outra lição quilombola. Se é verdade que a luta contra o racismo e o etnocentrismo tem que ter à frente negros, negras e indígenas, ela precisa ser abraçada pelo conjunto dos que lutam. Assim como os quilombos tinham uma maioria negra, mas também contaram com a participação de indígenas, brancos pobres e outros perseguidos pelo sistema colonial, nossa luta, hoje, precisa ser abraçada por todos os que se enfrentam com o sistema capitalista.

Lamentavelmente, contudo, em um país que foi construído sob a farsa da democracia racial, estas lutas são muitas vezes invisibilizadas pelos movimentos sociais, estudantil, sindical, popular etc. E é preciso dizer que a luta por ações afirmativas na Unicamp, como em outras universidades, nem sempre contou com o apoio necessário dos demais setores da instituição. E é preciso (e possível) reverter isto. As opressões nos dividem. E, para lutar, mais do que nunca, precisamos da unidade “dos de baixo” contra “os de cima”.

Como também é preciso ir muito além. É preciso que se compreenda que a luta anti-racista é fundamental para a construção de uma sociedade onde não haja mais opressão e exploração. Onde todos os oprimidos e explorados; os excluídos, os pobres e miseráveis possam desfrutar da liberdade, da igualdade e da fraternidade que a burguesia sempre prometeu, mas nunca teve o objetivo de garantir.

E mais: assim como a luta por cotas é, para nós, apenas o início no combate ao racismo e para a real democratização da universidade, precisamos da unidade dos homens e mulheres da classe operária, da juventude e de todos setores oprimidos para conquistarmos as verdadeiras reparações que precisamos.

Queremos enegrecer as universidades, mas também queremos moradia, transporte, saúde e todos os demais direitos que foram confiscados pela burguesia, seja aqui ou em qualquer lugar do mundo. E, para isto, só há um caminho: a conquista do poder pela classe trabalhadora, o povo pobre e todos e todas que, historicamente, têm sido marginalizados pelo capitalismo.

Queremos um “quilombo socialista”. E, por isso mesmo, sempre estivemos na luta por cotas em todo e qualquer lugar, tanto como militantes do PSTU quanto do Quilombo Raça e Classe. Por isso, não temos dúvida de que a vitória na Unicamp tem que ser comemorada. E muito!

Parabéns aos ativistas da Unicamp!

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