Maranhão é a referência da luta do movimento quilombola em todo o país. É lá que estão localizadas a maioria e as mais numerosas comunidades quilombolas que se estendem por quase todo o estado. Também é no Maranhão que há o maior número de comunidades que enfrentam o penoso processo de titulação da terra, 337 segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Até hoje, apenas 55 comunidades quilombolas tiveram suas terras tituladas.

A origem das comunidades quilombolas tem a ver com a crise açucareira e algodoeira da segunda metade do século 19. Endividados, muitos proprietários abandonaram suas terras, o que possibilitou a apropriação desses territórios pelas famílias de escravos e ex-­escravos. Uma apropriação que sempre foi coletiva, marcada pela indivisibilidade da terra e pelo usufruto comum dos recursos naturais.

O uso comum da terra também é a marca dos índios Gamelas do município de Viana (MA). Quase extintos pela ação do colonizador europeu, hoje eles removem as cercas das fazendas que aprisionam seu território.

A reportagem percorreu a região da Baixada Maranhense, conversou com lideranças do Moquibom, o mais importante movimento quilombola do Maranhão, e visitou fazendas retomadas pelos Gamelas. Conheça um pouco da história das lutas desse povo contra grileiros e fazendeiros. Um conflito que tende a se intensificar, pois boa parte do Maranhão compõe o chamado Matopiba (leia ao lado), a última fronteira de expansão do agronegócio no país.

“Cortar a cerca para libertar a terra”.


QUILOMBOLAS
A luta pelo território negro
Apesar de a comunidade existir há mais de 150 anos, nas últimas décadas fazendeiros se apropriaram de seus territórios e cobravam o “foro”, uma taxa de ocupação. Quem não pagasse, tinha suas plantações e roçados destruídos, além de sofrer ameaças de jagunços. Flaviano e os moradores do Charco sabiam que eram os legítimos donos da terra e se recusaram a pagar a taxa. A ousadia dos quilombolas provocou a ira dos fazendeiros. No dia 30 outubro de 2010, Flaviano foi assassinado por pistoleiros após sair de uma reunião. “Só deu tempo de eu chegar em casa e ouvir os tiros. Quando a gente foi pra lá, já achou ele morto com sete tiros na cabeça. Ele tava com o documento da associação tudo debaixo do braço”, explica Zilmar, sobrinha de Flaviano e atual líder da comunidade do Charco.

De forma absurda, a polícia local sugeriu que Flaviano teria cometido suicídio. A comunidade teve de fazer dias de vigília para evitar que os pistoleiros roubassem o corpo do líder quilombola. Só com a perícia do corpo poderiam comprovar o homicídio. Desde então, a comunidade luta por justiça. Mas, em 2015, os fazendeiros Manoel de Jesus Martins Gomes e Antônio Martins Gomes, acusados de serem os mandantes do crime, foram absolvidos pela Justiça.

A morte de Flaviano não interrompeu a luta no Charco. Ao contrário, fortaleceu a abnegação de toda a comunidade. “Ele [Flaviano] não está presente, mas nós estamos aqui pra realizar o sonho dele que é de ver o Charco titulado”, diz Zilmar.

Zilmar e sua mãe, Ana.

Protagonismo das mulheres
Na comunidade do Charco, salta aos olhos o protagonismo das mulheres. No momento mais difícil da luta contra a cobrança do foro, quando a comunidade estava à beira da fome, impedida de cultivar seus roçados, foram as mulheres que tomaram a decisão mais importante e decisiva para manter o combate aos latifundiários: matar os bois do fazendeiro que invadiram suas terras e, com eles, alimentar suas famílias. “Nós somos mães, nós somos esposas, mas nós também temos que ter luta. Nós têm que ir pra luta. Como dizem, que mulher é só pra tá em fogão, é mentira. Mulher é pra tá em todos os lugares, principalmente na luta pra defender seu território”, explica a guerreira Zilmar.

A luta em Palmeirândia
Os mesmos fazendeiros acusados de mandar assassinar Flaviano também ameaçavam a comunidade de Cruzeiro e Triângulo, do município de Palmeirândia (MA). Desde 2005, a comunidade trava uma luta pela titulação do território de aproximadamente 700 hectares. Em todo esse período, os quilombolas foram ameaçados e sofreram com a investida de jagunços e da Justiça, sempre associada aos latifundiários. “Em 9 de novembro de 2009, houve a primeira retomada do território de Cruzeiro. Passamos um ano e quatro meses acampados aqui na beira da [rodovia] MA-14 e tivemos uma reintegração de posse. Quando foi 2011, tentamos retomar novamente. Tivemos duas reintegrações de posse em 2011, com várias ameaças e tentativas de homicídios e nem por isso desistimos da luta”, explica Santinho, líder da comunidade de Cruzeiro e Triângulo.

A sede da associação dos moradores foi queimada dezenas de vezes. Casas de moradores também já foram destruídas. No dia 17 de fevereiro de 2016, um grupo chegou na casa da quilombola Deuziane Silva e pediu para que ela e seus filhos saíssem. “Quebraram tudo, geladeira, televisão, DVD. No colchão, eles meteram o facão. Não fiquei com uma colher inteira”, conta.

Apesar dos golpes, recentemente a luta em Cruzeiro obteve uma vitória importante que elevou o moral da comunidade. Os quilombolas conseguiram que fosse publicado os Relatórios Técnicos de Identificação do território da comunidade (RTDI). Mas ainda há muita luta pela frente, pois os fazendeiros poderão contestar o relatório, o que pode arrastar por anos o processo na Justiça.

Deuziane Silva; ao fundo, sede do quilombo que já foi destruída diversas vezes.

SAIBA MAIS
O que é o Moquibom?
A história do Moquibom começou em 2006. Com a ajuda de padres católicos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os quilombolas da comunidade Nazaré, em Serrano do Maranhão, realizaram um encontro para discutir como travar a luta pelo território. Logo, outras reuniões em outras comunidades foram realizadas. Foi aí que o prefeito da cidade na época, resolveu comprar terras onde viviam quilombolas da comunidade Bacabal para plantar cana-de-açúcar. “Ele resolve cercar essa área e vinha cortando as roças do pessoal e ia cercar a comunidade. Daí, a comunidade decidiu cortar o arame do latifúndio”, explica Gil Moquibom, liderança do Quilombo Nazaré e um dos fundadores do Moquibom.

Essa resistência foi o marco para organizar o movimento e reuniões em outras comunidades foram realizadas. Dos encontros surgiu a ideia de criar o Movimento Quilombola da Baixada Maranhense. Mas foi em 2011, quando realizaram um ocupação na sede do Incra, em São Luís, que o movimento ganhou uma dimensão estadual. “Quando acampamos, a notícia começou a espalhar. E aí começou a vir comunidades de várias partes do Maranhão. Ali caiu a ficha que a gente não tava representando só o povo da baixada, mas o povo [quilombola] do Maranhão inteiro”, conta Gil. Nesse ano, também começou a relação do movimento com a CSP-Conlutas. Em 2016, o Moquibom filiou-se à central. “Através da CSP, a gente pode ter contato com outros quilombos do Brasil e achar uma forma para fazer crescer o movimento”, fala Gil.

Hoje, o Moquibom congrega aproximadamente 220 comunidades quilombolas. “O Moquibom saiu pra defender, se reunir, se articular e pra lutar pela desapropriação do território e defender a vida. O Moquibom é uma bandeira de luta”, explica Zilmar.

Gil, uma das lideranças do Moquibom.

GAMELAS
A luta pela terra ancestral
A gente trabalhava tudo liberto. Onde a gente achava que tinha que botar o roçado a gente fazia, os animais ficavam tudo solto, não tinha necessidade de prender. Aí eles começaram a fazer rumo, cortar, dividir e vender. A gente achou que não era assim e que devia resistir”. Quem conta essa história é Epitácio Silva, velha liderança indígena que está na luta desde 1971.

A luta pelo território Gamela remonta aos tempos do Brasil colonial. Depois de travar forte resistência aos invasores portugueses em seu território, onde sempre ofereceram abrigo a escravos que fugiam das fazendas, em 1759 o Rei de Portugal reconheceu uma área para os indígenas e a demarcou com quatro pedras. Elas ainda estão lá, mas, nos anos 1960 e 70, grileiros e latifundiários, com posse de títulos falsos, começaram a lotear o território indígena e a cercá-lo com arame.

Hoje, os Gamelas promovem a retomada do território ocupando fazendas, cortando o arame e libertando a terra para o usufruto comum da comunidade. “A retomada está dando alguma liberdade pra comunidade, porque nós já pode andar aqui, e nesse tempo não se podia”, explica Epitácio.

Gamelas dançando.

Muitas áreas do antigo território encontram-se degradadas. Há buracos feitos por toda parte para extração comercial de argila. O eucalipto também tomou conta de algumas áreas. Até um imenso lixão ocupa parte do território. “O chorume do lixão, além de tá contaminando o lençol freático, tá contaminando o nosso igarapé. Nosso prefeito e governador não tão nem aí. Os doutô tão de braço cruzado”, explica Mandioca, jovem liderança gamela.

Os gamelas também realizam ações para libertar os juçarais (açaizais) nas comunidades de seu território. A juçara (açaí) é um alimento muito consumido nessa região, mas cercas foram levantadas para impedir que a população possa extraí-lo. Acompanhados por crianças, mulheres e homens da comunidade, os indígenas cortam cercas, inclusive elétricas ao alcance das crianças, e avisam todo mundo que juçaral foi libertado e que todos podem usufruí-lo. É uma verdadeira festa. “Nessas áreas, tá cheio de cerca elétrica. Essas comunidades tem o campo e o baixo [juçaral] como lugar essencial para a reprodução da vida”, explica Inaldo Gamela.

No ano passado, a imprensa divulgou um plano dos fazendeiros para matar as lideranças indígenas. “É viver ou morrer, com nosso corpo e com nossa alma. Se quiser matar, pode matar, mas daqui a gente não sai”, sentencia o velho Epitácio.

Epitácio Silva, velha liderança gamela.

FRONTEIRA DA BARBÁRIE
Matopiba ameaça povos tradicionais
A nova fronteira agrícola do agronegócio na produção de grãos é conhecida como Matopiba – formada por parte dos estados do Maranhão, de Tocantins, do Piauí e da Bahia. Hoje, 9% da produção de grãos do país é colhida ali. Boa parte do Maranhão está incluída nessa região. Balsas, no sul do estado, tem seus Chapadões ocupados por enormes plantações de soja. O hectare na cidade, que em 1988 custava US$ 15, chegou a US$ 5 mil.

Dilma e a ex-ministra da Agricultura, Kátia Abreu, foram as maiores entusiastas desse projeto e criaram até uma Agência de Desenvolvimento do Matopiba. O governo do PT também financiou a criação de portos, grandes terminais de estocagem, ferrovias, rodovias, hidrovias, usinas hidrelétricas que garantem as condições para que a produção em larga escala seja escoada para fora do país. Recentemente, Temer negociou com a China a construção de projetos siderúrgicos em Bacabeira (MA), que deverá produzir 3 milhões de toneladas de aço.

A expansão do agronegócio tem produzido enormes conflitos com as populações camponesas, indígenas e quilombolas. Não por acaso, o Maranhão tem sido o estado com maiores conflitos no campo segundo a CPT. Em 2016, o estado ficou em segundo lugar em assassinatos no campo, com 12 mortes.

FOTOS: Jeferson Choma e Eunice Santos