Hertz Dias

Membro da Secretaria de Negros do PSTU e vocalista do grupo de rap Gíria Vermelha

É preciso uma rebelião dos de baixo para frear o genocídio negro

“2 de novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luís do outro lado. E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela Vida dura. Colocando flores sobre a sepultura. ‘Podia ser a minha mãe’.  Que loucura!” (Fórmula Mágica da Paz, Racionais Mcs).

Duas chacinas ocorreram de terça-feira, 3 de abril, para quarta, 4, na grande São Paulo. Nove pessoas foram mortas e várias encontram-se hospitalizadas. A maioria era de jovens de famílias da “pele escura” e filhos de Josés e Marias “do rosto abatido pela vida dura”. Mas, antes de emitirmos nossa opinião sobre o fato, segue nossos sentimentos aos familiares das vítimas.

Tanto para a imprensa burguesa como para a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os antecedentes dos mortos é o que mais importa. Assim, se alguns dos jovens assassinados residem em comunidades que possuem “biqueiras”, justificam-se as execuções e engavetam-se as investigações. Isso explica porque em São Paulo, estado que possui uma das policias mais letais do mundo, 75% dos inquéritos por homicídio são arquivados pela justiça (Dados do Conselho Nacional de Justiça).

Quem não se lembra quando, em maio de 2006, mais de 600 jovens foram mortos pela polícia do PSDB? A justificativa para tamanho banho de sangue foi o famigerado auto de resistência ou resistência seguida de morte, onde as investigações recaem sobre os antecedentes das vítimas e não nos assassinos da coorporação. A equação é simples: cria-se um perfil de criminoso em potencial (negro), promove-se o encarceramento em massas – dos quais 41% estão presos sem julgamento (222 mil pessoas) – e depois elimina-se parte destes indivíduos. A absolvição dos assassinos se ampara nos antecedentes das vítimas. Se tem passagem pela polícia, merecia morrer! Esta é a razão pela qual podemos concluir que o sistema prisional brasileiro é muito mais que uma “escola do crime”; é na verdade uma fábrica de corpos negros sem vida.

Isso demonstra que as vidas negras não importam em absolutamente nada nem para a justiça burguesa e nem para os partidos da ordem. Uma política defendida por todos esses partidos (PT, PMDB, PSDB, DEM, etc.) está na necessidade de aumentar a repressão contra a juventude negra da periferia. Em relação ao PL 171 (da Redução da Maioridade Penal) tanto o PT quanto o PSDB defendiam o aumento do tempo de encarceramento de adolescentes de 3 para 10 anos.  Nesta mesma direção, a reposta do governo Temer aos massacres ocorridos em presídios brasileiros no início deste ano foi a de construir mais presídios. Dados do Ministério da Justiça mostram que, entre janeiro de 1992 e junho de 2013, o número de pessoas presas aumentou 403,5%, enquanto a população cresceu 36% no mesmo período que correspondem aos governos do PMDB, PSDB, PT.

Ou seja, para esses partidos, os jovens negros e pobres das periferias brasileiras continuam sendo tratados como “coisa”, como “objetos falantes”, como seres sem humanidade. Podemos afirmar que isso é parte de uma herança da escravocracia colonial que perdurou por mais de 350 anos em nosso país, mas temos que lembrar que tal herança só existe porque passou de geração a geração e se mantém na atualidade porque todos que governaram até hoje governaram para os tataranetos da escravocracia colonial, ou seja, para burguesia que reside nos bairros chiques cujos IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é de causar inveja aos dos países imperialistas.

Por isso, a afirmação de que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo, é uma verdade que deve ser matizada. É preciso perguntar: violento para quem? No período em que PT esteve no poder, a violência manteve-se quase estagnada, no entanto, desmembrando os dados por raça, a realidade se sobrepõe à aparência. Segundo o Mapa da Violência de 2014, considerando a década de 2002 a 2012, o número de assassinatos de brancos diminuiu, passando de 19.846, em 2002, para 14.928, em 2012, enquanto as vítimas negras aumentaram de 29.656 para 41.127, no mesmo período.

O mesmo serve para a questão do feminícidio. Recortemos, novamente, os dados pelo critério racial e comprovamos que no período de 2003 a 2013 o número geral de assassinatos de mulheres brancas caiu 9,8%, enquanto os homicídios de mulheres negras aumentara, 54,2%(dados do Mapa da Violência-Homicídio de Mulheres no Brasil).

É essa combinação perversa de machismo, racismo e da exploração capitalista que explica a violência deste país. Por caso, alguém já ouviu falar de chacina praticada contra jovens brancos em bairros como o Morumbi?

Os nove mortos na periferia da Zona Sul e da Zona Norte foram mortos pelo racismo, que é muito mais do que uma simples ideologia solta no ar. O racismo é uma forma de agressão coletiva que a burguesia utiliza para humilhar, oprimir, segregar e exterminar. O racismo está impregnado em todas as instituições burguesas, da polícia à universidade, porque é uma necessidade da burguesia para se manter enquanto classe social dominante no Brasil, segundo país mais negro do mundo.

Segundo estudo realizado pelo professor Rodrigo Leandro Moura para o IPEA intitulado “Vidas Perdidas e Racismo no Brasil”, 80% das mortes de negros no Brasil tem o racismo como causa principal. E como a burguesia tenta encobrir tamanho absurdo? Aí sim, entra a maldita ideia de que vivemos em uma democracia racial. Essa é a função do mito da democracia racial, acobertar o racismo e dar guarida aos agressores racistas (patrões, polícia, governos e demais instituições burguesas). Assim, somos levados a acreditar que, se não existe racismo, o genocídio negro não é resultado do fracasso do capitalismo, mas sim dos próprios negros, que não sabem aproveitar as oportunidades que o capitalismo lhes oferecem.

Foi esse tipo de pensamento que a apresentadora global, Fátima Bernardes, expressou abertamente nesta quinta-feira em seu programa “Encontro” ao tentar impedir, deselegantemente, que os convidados negros questionassem a meritocracia, que ela estava a defender, como critério para definir vencedores e perdedores neste tipo de sociedade. Ora, a defesa da meritocracia é uma necessidade da burguesia, porém, é uma defesa do racismo, e, portanto, do genocídio negro.

Na verdade, é na estrutura do capitalismo que se encontram as causas do genocídio negro e não nas estruturas psicológicas ou biológicas dos negros. Se chegarmos a essa conclusão, que parece óbvia, chegaremos a outra que nos parece urgente: a necessidade de destruir com a estrutura de funcionamento da sociedade capitalista para libertar os negros das correntes da opressão racial!

Por isso que nós do PSTU defendemos a necessidade de recuperarmos a tradição dos nossos antepassados quilombolas. Durante o período em que perdurou a escravidão no Brasil, a opção feita pela maioria dos negros para resgatar sua humanidade que o trabalho compulsório havia arrancado, era a rebelião contra a escravidão. É isso que faz dos quilombos uma página viva da nossa história que a burguesia insiste em querer arrancar, tal como está tentando fazer o deputado Jair Bolsonaro (PSC- RJ).

Tomando essa experiência histórica, acreditamos que para estancar o genocídio negro é preciso que haja uma rebelião por baixo, com direção e com um programa capaz de unificar o proletariado negro e não-negro deste país.  E esse programa é o das reparações históricas que nos dá a possibilidade de reunir todas as demandas das lutas negras que estão em curso em nosso país (contra o genocídio e feminicídio negro, desmilitarização da PM, titulação dos territórios quilombolas, implementação da lei da história da África e dos afro-brasileiros na educação básica,  cotas nas universidades  e nos concursos públicos, salário igual para trabalho igual, suspensão da dívida pública nascida com a independência que manteve a escravidão, etc.). Fazendo isso, avançaremos na superação da fragmentação dessas lutas.

Os Comitês de Lutas que estão sendo organizados pela CSP-Conlutas nos bairros, para construir a Greve Geral e derrotar as Reformas de Temer, pode ser um espaço privilegiado para dar corpo a essa unidade necessária em torno da política de reparações, que não é uma invenção dos negros e negras do PSTU, ela é, antes de tudo, uma bandeira histórica do movimento negro mundial que, infelizmente, foi abandonada na Conferência contra o racismo realizada na cidade de Durban, África do Sul, em 2001.

Por fim entendemos que, considerando o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo e pelo caráter ultraconservador da nossa burguesia, tais demandas por reparações, por mais democráticas que possam parecer, só terão condições de se realizar através de uma revolução social que coloque a classe trabalhadora e a juventude no poder.