Em 16 de fevereiro, foi realizada a 58ª edição do Grammy, a premiação da indústria musical norte-americana que, assim como o Oscar, é altamente determinada por aquilo que mais interessa aos produtores artísticos e fonográficos: o lucro. Contudo, houve algo nesta edição que é digno de nota: a vigorosa apresentação do rapper Kendrick Lamar que, ao mesmo tempo em que denunciou o racismo, o encarceramento e genocídio do povo negro norte-americano, exaltou a força da luta contra o racismo.

Recentemente, dois outros episódios também colocaram em evidência o tema racial no “show business” (negócios vinculados ao mundo dos espetáculos): a apresentação de Beyoncé no final do campeonato de futebol norte-americano (o Super Bowl) e o boicote ao Oscar (que, pelo segundo ano, não indicou sequer um negro entre os vinte atores e atrizes que concorrem) promovido por negros e negras que atuam no mercado cinematográfico, como Spike Lee, Jada Pinkett e Will Smith.

As contradições que existem nessas histórias só não são maiores do que o impacto que elas causaram. Por isso, é preciso refletir sobre o porquê essas declarações e posturas desafiadoras do racismo estão pipocando em esferas nem sempre sensíveis ao tema.

Quando as ruas sacodem os palcos 
Os marxistas que se dedicam ao estudo da Arte e da Cultura sempre defenderam que aquilo que passa pela cabeça das pessoas e as formas que elas encontram para representar suas idéias e cultura (inclusive a música e o cinema) refletem, de forma distorcida e contraditória, aquilo que está ocorrendo na “base” da sociedade: nas relações econômicas e políticas e nos tensionamentos e crises sociais. 

Este é o nosso ponto de partida. Só dá pra entender as posturas destes artistas (particularmente figuras incensadas pela mídia e trilhardárias, como Beyoncé e Will Smith) se entendermos que mais importante do que eles fizeram é a realidade que os levou a tomar estas posições.

Ou seja, se é inegável que suas atitudes são progressivas e contribuem para dar visibilidade à luta contra o racismo, também é preciso lembrar que suas vozes são apenas ecos distorcidos de algo muito mais potente e vigoroso: os gritos de revolta e os protestos que, de forma crescente, têm explodido nos EUA. Rebeliões como a de Ferguson (onde Michael Brown foi assassinado, em 2014) que, segundo a própria mídia norte-americana, só podem ser comparadas com as dos anos 1950 e 1960, no processo de luta pelos direitos civis. 

São as vozes das centenas de milhares que saíram às ruas cantando que “vidas negras importam” que têm sacudido os palcos e o “show business” na terra de Obama. Algo que foi particularmente potente na apresentação do rapper Kendrick Lamar, no Grammy.

No Grammy, vozes negras importam
A apresentação de Lamar (campeão de indicações e vencedor de 5 troféus) foi de arrepiar. Depois de entrar acorrentado, ao lado de negros vestidos de presidiários e com seus músicos enjaulados em celas, o rapper foi “se libertando” enquanto cantava “The Blacker the Berry” e seus trajes e corpos surgiam pintados com elementos da arte e da cultura africanas.

Ao final, o rapper ficou sozinho no palco, iluminado pelo mapa da África onde se lia o nome da cidade de Lamar, Compton, conhecida por ter uma maioria (75%) de não-brancos (principalmente negros e latinos) e pela constante brutalidade policial contra os jovens negros, o que fez dela, não por acaso, o berço do G-Funk e do Gangsta Rap (que incluem grupos e rappers como o N.W.A., Eazy-E, Dr. Dre, Ice Cube, MC Ren e DJ Yella).

Se isso já não fosse o suficiente para mandar o seu recado, Lamar engatou “Alright” que não é nada menos do que o “hino oficial” do movimento “Black Lives Matter” (“Vidas negras importam”). A música começa com versos poderosos – “Por toda a minha vida, eu tenho que lutar, mano!” – e seu refrão se transformou em palavra-de-ordem nas manifestações: “We gon´ be alright”, ou seja, “nós vamos ficar bem” (assista cena de protesto: https://youtu.be/VUC_DOhfzwQ).

O impacto que a apresentação teve pode ser exemplificado por aquilo que aconteceu com a platéia do Grammy: não foram poucos os artistas negros e negras que ergueram os punhos, fazendo o gesto típico dos Panteras Negras.

Além de Lamar, também vale destacar a presença do cantor D’Angelo, vencedor dos prêmios de melhor álbum de “Rhythm and Blues” (R&B), com “Black Messiah” (“Messias Negro”), e de melhor música de R&B com “Really Love”. Depois de seu aclamado Voodoo (2000), D´Angelo ficou fora do mercado por 14 anos, em função de uma série de problemas pessoais, alcoolismo e prisão por porte de drogas.

O lançamento do álbum foi antecipado em função do levante negro em Ferguson e seu disco foi visto pela mídia como um “acerto de contas político”, principalmente depois de o cantor ter declarado que o nome do disco não era uma referência à necessidade de um único “messias”, mas sim um chamado para que “todos nós devemos aspirar a ser um Messias Negro” e que sua música falava “sobre pessoas que se levantam em Ferguson e no Egito e no Occupy Wall Street e em cada lugar onde a comunidade agüentou mais do que o suficiente e decidiu fazer a mudança acontecer”.

Beyoncé entra em campo
Uma semana antes, foi a cantora pop Beyoncé que de forma um tanto inesperada, dada sua trajetória, repercutiu o barulho das ruas. E não há como negar que o impacto foi estrondoso, já que sua legião de fãs e forte presença na mídia fizeram com que sua apresentação varresse o planeta de ponta a ponta, levando consigo imagens que colocaram o tema racial no centro do campo de um dos maiores eventos esportivos dos EUA.

Não foram poucos os que ficaram literalmente embasbacados ao ver as referências aos Panteras Negras e a Malcolm X nos trajes e trajes e gestos utilizados durante a apresentação de sua nova música, “Formation”, que fala sobre violência policial, auto-estima, ancestralidade e identidade negras. E se o impacto da apresentação já tinha sido gigantesco, o clipe da música foi bombástico.

Nele, há referências ao “Black Lives Matter” e à cidade de Nova Orleans (que por ter uma população majoritariamente negra foi deixada ao léu depois do furacão Katrina) e uma cena particularmente significativa: uma criança negra com um moletom com capuz (como o de Michael Brown) peitando um pelotão de policiais ao lado de um muro grafitado com a frase “Por que vocês estão atirando na gente?”.  

Mas, como exemplo das contradições de alguém que está entre o barulho das ruas, a sedução do mercado e a crença do enfrentamento da opressão através do “empoderamento” individual, os versos da música de Beyoncé também celebram, a todo momento, o estilo “ostentação” (se locomover em helicópteros, usar jóias e roupas caras etc.) e ascensão social, como fica evidente em seus versos finais: “Esteja sempre graciosa, a melhor vingança é o dinheiro”.

Contradições à parte, o fato é que a cantora assumiu (sabe-se lá até quando, vale lembrar) uma postura bastante distante de seus sucessos e engajamento social anteriores. Algo que é impossível menosprezar. Mas, acima de tudo, revela que o eco das manifestações tem sido tão forte que está sacudindo até os setores da população negra acomodados socialmente e que se pensavam impermeáveis ao racismo.

Um impacto que também pode ser medido pela reação que causou nos conservadores, racistas e afins. Alguns chegaram a organizar um protesto na frente do estádio. Outros como Donald Trump e ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani fizeram campanha na mídia para denunciar Beyoncé por incitar a população negra a atacar os policiais.

Para além dos palcos e dos holofotes
Os dois episódios são, sem dúvidas, manifestações progressivas para a luta racial e atingiram milhões de espectadores mundo afora, reverberando as lutas de Ferguson, Baltimore e tantas outras. E sua importância tem que ser entendida também em relação às profundas mudanças que têm acontecido na consciência de negros e negras nos Estados Unidos.

Depois da eleição de Barack Obama em 2009, foi feita uma intensa propaganda que tentou vender a ideia de que os EUA eram, a partir da presença do primeiro negro na Casa Branca, um país “pós-racial”; ou seja, um país onde o racismo tinha deixado de ser um tema central e um divisor de águas.

Contudo, o que temos visto é exatamente o oposto. Os constantes assassinatos de jovens negros por policiais e o fato de Obama ter se tornado o presidente que mais deportou imigrantes nas últimas décadas são apenas dois fatores que fizeram com que as ilusões e expectativas despencassem ladeira abaixo e a chama da luta contra o violento racismo nos EUA esteja novamente incendiando corações e mentes

Ao mesmo tempo em que continua exercendo o papel de opressor e explorador imperialisma, seja no Haiti, na África, Oriente Médio ou na Ásia, Obama também é responsável direto pela aplicação dos planos neoliberais que têm aumentado o desemprego e atacado as condições de vida dos mais explorados e oprimidos de seu próprio país.

É esta situação que tem empurrado milhares para ruas e provocado uma profunda mudança de estado de ânimo e na disposição de luta de negros e negras. E é isto também que está fazendo com que Obama esteja chegando ao final de seu segundo mandato como exemplo de que não basta ter um negro “empoderado” para reverter séculos de segregação e exploração.

Uma lição que ficou particularmente nítida em Baltimore (cidade de Freddie Gray, assassinado em 2015) onde negros e negras estão nos principais postos de “poder”. Além da prefeita Stephanie Rawlings-Blake, também são negros(as) o Comissário de Polícia, a maioria e o presidente da câmara de vereadores, o Superintende das Escolas Públicas e todos conselheiros da Comissão de Moradia.


“Eu sou o próximo?” questiona cartaz durante protesto em Ferguson

Analisando esta situação, a escritora e ativista dos movimentos negro e popular Keeanga-Yamahta Taylor escreveu um artigo (“Em Baltimore e em todo o país, rostos negros em altos postos não têm ajudado a população negra”) na revista “In these times” afirmando: “Hoje, nos EUA, temos mais negros(as) eleitos para postos de comando do que em qualquer outro momento da História. Mesmo assim, para a vasta maioria do povo negro, a vida mudou pouquíssimo. Representantes negros eleitos, em sua enorme maioria, têm governado da mesmíssima forma que seus parceiros brancos, refletindo, assim, todo o racismo, corrupção e políticas que favorecem os mais ricos”. 

Não há dúvida de que dentre esta “vasta maioria”, milhões e mais milhões são fãs de Lamar, Beyoncé, D´Angelo e Will Smith. E é nisto que reside a importância das posturas adotadas por estes artistas. Ao mesmo tempo em que o barulho das ruas fez com que eles pendessem à esquerda, suas posturas e músicas com certeza darão ainda mais ânimo para os próximos protestos.

E eles virão. E que venham fortes o suficiente pra continuar sacudindo não só os palcos, mas acima de tudo os corações e mentes dos trabalhadores e da juventude negra, derrubando as ilusões no “empoderamento” individual ou em autoridades e políticos negros que, como já disse Solano Trindade, “não são nossos irmãos” exatamente por serem “amigos do Capital”. O mesmo Capital que alimenta o racismo para superexplorar o povo negro e, por isso mesmo, precisa ser destruído para que, de fato, possamos cantar a liberdade.