Otavio Aranha de Salvador

 

Ben-Hur (2016) é a refilmagem de um clássico dos cinemas. Quando se fala em “clássico” em uma arte, refere-se a um tipo de produção que marcou não só uma época, mas que atravessou o tempo e as gerações, marcando a própria arte. Assim, não se pode falar de Música sem a Nona Sinfonia de Beethoven, de Pintura sem lembrar da Mona Lisa (La Gioconda) de Da Vinci, ou de Dramaturgia sem a tragédia de Romeu e Julieta, de Shakespeare.

Estamos falando então de Ben-Hur (1959), dirigido por William Wyler (O Morro dos Ventos Uivantes, de 1939 e A Princesa e o Plebeu, de 1953) e estrelado pelo famoso Charlton Heston (O Maior Espetáculo da Terra, 1952 e Os Dez Mandamentos, de 1956), já na condição de terceira adaptação para o cinema do romance de Lew Wallace, intitulado Ben-Hur: um conto do Cristo (Ben-Hur: A Tale of the Christ, 1880).[1]

Neste filme, pela primeira vez na história do cinema, foi concedida onze do total de doze estatuetas do glamoroso Oscar[2], o que permaneceu como recorde histórico da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas por 39 anos, até ser igualado por Titanic (1998) e Senhor dos Anéis: o Retorno do Rei (2004). Igualado, mas ainda não superado até hoje.

Com toda essa bagagem que representa esse título, uma refilmagem é uma responsabilidade muito grande, pois remake não deve ser entendido como mera cópia de Shakespeare, de Beethoven, ou de Da Vinci, utilizando-se de recursos modernos ou da linguagem contemporânea. Um remake é uma reescrita da obra, baseando-se na história original, mas com liberdade e criatividade em modificá-la. Desta feita, seria necessário, em primeiro lugar, muita ousadia para fazer a refilmagem deste clássico, no sentido de resgatá-lo, recontá-lo e homenageá-lo.

Infelizmente, as grandes produtoras, representantes do capital globalizado no campo do Cinema, pensam exclusivamente em filmes para gerar lucros e, portanto, na capacidade de atração superficial de um público pouco “alfabetizado” em clássicos épicos. O resultado é que não conseguiu nem se aproximar de um épico da década de 1950, o que afetou consideravelmente as expectativas em torno de sua própria lucratividade.

O remake Ben-Hur (2016), dirigido pelo russo Timur Bekmambetov (O Procurado, 2008 e Abraham Lincoln – Caçador de Vampiros, 2012) é um filme que pouco emociona e cativa o espectador, com atuações pouco marcantes, a exceção dos coadjuvantes Rodrigo Santoro (como Jesus Cristo) e Morgan Freeman (como o Sheik Ilderim). A trilha sonora quase sem impacto algum, e um final um tanto quanto simplório demais para o desfecho de toda a trama.

O ponto alto do remake, como qualquer outro produto da escola hollywoodiana, está nas dramáticas e impactantes cenas do navio de escravos e na apreensiva sequência da corrida de bigas. Muito bem-feitas e com efeito visual que não deixa a desejar para um filme de ação. Ah, para esclarecer bem este assunto, corrida de bigas não é um esporte. Esporte, inclusive a designação deste termo, assim como o seu significado, é uma construção moderna, pós revolução industrial. Assim, temos uma espécie de jogo ou mesmo uma corrida com as bigas, já que as únicas regras são: sobreviver e cruzar a linha de chegada, vivo.


Cena do filme Ben Hur de 1959

Contudo, a construção da temática do filme: conflito entre irmãos, vingança e perdão, surpreende pela base materialista a qual é desenvolvida, pelo menos, até antes do final. Talvez, mesmo sem a plena consciência da base filosófica de seu roteiro, a concepção materialista “grita” no desenvolvimento de quase toda a história.

Estamos na cidade de Jerusalém, Século I, ou seja, paralelo aos acontecimentos de Cristo na Terra. Judah Ben-Hur (Jack Huston) é um judeu bem-sucedido, pertencente a uma rica família de mercadores. Suas condições materiais de vida e de existência, permitem a realização de festividades, corridas a cavalos e outras distrações possíveis a quem não necessita desenvolver o trabalho com as próprias mãos. Fora de seu castelo, a opressão romana atinge a todos, de tal forma que há “grupos guerrilheiros” que intentam pela liberdade, utilizando-se para isso, de métodos terroristas contra um regime de Terror.

Judah, como um bom samaritano e rico, ajuda e acolhe um dos jovens rebeldes, mas é contra seus métodos de luta, pois entende ser possível a convivência pacífica e “sem conflitos” com os romanos. Seu pensamento é posto à prova, quando acontece um atentado na passagem do governador, Poncio Pilatos, na cidade. Assim, Judah Bem-Hur e sua família são condenados por um comandante romano: o seu próprio irmão de criação.

Enviado como escravo para as galés (ou o que parece ser uma liburna[3]) para ser “parte do navio”, seus próximos cinco anos serão de açoites, pouca comida, pouco descanso, açoites e remar, remar, remar…

Na destruição de sua embarcação, encontra a possibilidade de fuga, caso sobreviva ao naufrágio em algum lugar no meio do mar. Assim, consegue colocar em prática seu desejo de vingança. A consciência de Judah se move de acordo com as suas condições de existência: o “pacifista” e “mediador” dos romanos cedeu lugar a um ex-escravo sedento de ódio e vingança contra seus opressores. A opressão, ainda que compreendida por outros, somente é sentida por aqueles e aquelas que sentem em seu cotidiano (mulheres, negros, LGBTT’s sabem bem disso! ).

Ainda que o filme sustente a questão voltada muito mais como um problema pessoal e individual, é notória a mudança da consciência do personagem de acordo com a mudança de suas condições de vida. O filósofo e militante marxista dos Estados Unidos, George Novack (2015, p. 24)[4] nos explica que

O materialismo surge da atividade prática da sociedade e impregna todos os aspectos da vida humana. De fato, a exposição geral da perspectiva materialista e de seu correspondente método de ação em termos bem definidos é menos comum do que as atitudes materialistas concretas, que se manifestam na política, na lei, nos costumes, na moral, na indústria, na arte e na ciência.

Isto significa que um roteiro de cinema, mesmo escrito por um fenomenólogo ou por um pós-moderno, não deixará de ser impregnado de atitudes materialistas na ação de seus personagens, ainda que nem os personagens e nem os roteiristas tenham consciência disso.

No filme, o mesmo acontece com o irmão de Judah: Messala (Toby Kebbell). Como filho adotivo da família Hur, não havia outras preocupações que não a problemática psicológica da rejeição-aceitação dos que o acolheram. Longe dali e junto às hordas romanas, comendo, vestindo-se, armando-se e lutando com a base material dos romanos, a consciência de Messala modifica-se a tal ponto que se aliena totalmente de seu lar e das pessoas que o criaram, para se tornar um romano opressor e repugnante. Não é o sangue de romano em suas veias, descendida de seu avô, que o torna um romano, mas a base material de sustentação de sua vida, vinda do Império Romano.

Assim, é a materialidade histórica, o modo como produz e reproduz a sua existência, combinada a sua experiência real de vida, que molda, não sem contradições e mediações, a consciência, os sentimentos e os valores de Judah e de Messala. Curiosamente, até então, os encontros de passagem com Jesus (Rodrigo Santoro) tornam-se mais realistas em função da opção de retratá-lo como um simples carpinteiro, um homem comum e sem poderes especiais, mas com ideias inovadoras, impactantes e por que não dizer, revolucionárias para a época (“amar vossos inimigos?”)

Esta linha de raciocínio apenas é quebrada nos cinco minutos finais da história, em que a base idealista e dogmática toma lugar por meio dos “milagres” que caem do céu sem qualquer explicação e sem o lastro no roteiro desenvolvido até aqui.  Porém, mais do que a sensação da possibilidade real ou não deste final, ou então, o desejo ou não por um desfecho “happy end”, é a quebra total com a lógica de desenvolvimento da trama e a inversão (ou desconsideração) de tudo que ocorrera até então. Como se tivessem dado um “cavalo de pau” no filme que mudou toda a sequência narrativa.

Vinda de Hollywood, onde tudo é possível, não seria surpreendente que este seja um final reescrito por seus produtores para agradar e atrair ao público jovem, cristão e esperançoso, diante de tanta dureza que há em tempos de crise econômica capitalista. Mais do que uma suspeita, é visível que o final não se encaixa com o desenvolvimento da história, o que foi quase confirmado pelo vice-presidente da Paramount Pictures, Rob Moore, ao declarar que a mudança no papel de Jesus seria compatível com as expectativas de fé do público[5].

Enfim, para quem busca uma ótima diversão, a disputa de bigas prende a atenção e a tensão, mas para quem busca um clássico, melhor remeter ao original de 1959.


[1] Segundo informações da resenha realizada por Ritter Fan ao site Plano Crítico, o romance citado se tornou primeiramente uma peça teatral, posteriormente, em 1907, tornou-se um curta –metragem de 15 minutos. Em 1925, Ben-Hur tem a sua segunda adaptação ao cinema, agora como um longa-metragem mudo e sem cores. Disponível em http://www.planocritico.com/critica-ben-hur-1959/ Acesso em: 14 set. 2016.

[2] As premiações do Oscar foram nas categorias: Melhor Filme, Diretor, Ator, Ator Coadjuvante, Direção de Arte, Fotografia, Figurino, Efeitos Especiais, Edição, Música e Gravação de Som, o que faltou apenas a categoria de Melhor Roteiro Adaptado. O filme também ganhou três Globos de Ouro, além de outras premiações.

[3] Tipo de embarcação romana desenvolvida para a guerra, contava com cerca de 25 remadores nas laterais, um único mastro com vela e um aríete à frente da proa, o que permitia se deslocar rapidamente no mar e quebrar embarcações inimigas ao meio.

[4] NOVACK, George. As origens do materialismo. São Paulo: Editora Sundermann, 2015.

[5] Segundo declaração dada ao jornal The New York Times. Disponível em: http://mobile.nytimes.com/blogs/artsbeat/2015/06/25/paramount-promises-respectful-portrayal-of-jesus-in-ben-hur/?referer= . Acesso em 15 set. 2016.