Poucos artistas foram tão populares quanto Belchior. O motivo é que suas músicas oferecem uma visão do Brasil e do mundo que nenhum intelectual ou acadêmico pôde vislumbrar

A morte de Belchior, no dia 30 de abril, trouxe luto para um Brasil que está em luta contra o governo Temer e sua corja de Brasília.

Recluso por uma década, Belchior planejava voltar aos palcos nos próximos anos, movido especialmente pela situação política do país. Malu Muller, dona da casa onde o compositor morreu em Santa Cruz do Sul (RS), contou para a imprensa que “Ele estava preocupado com a situação política do Brasil, sentia que estava na hora de voltar. Dizia que não podia ficar se escondendo num momento assim”.

Poucos artistas foram tão populares quanto Belchior. As letras de suas músicas falam sobre aquilo que o povo trabalhador sente, vive, trabalha e ama. São letras que oferecem uma visão do Brasil e do mundo que pouquíssimos filósofos, sociólogos, intelectuais e acadêmicos puderam vislumbrar. Como numa crônica, ele fala de um sertanejo que abandonou o Ceará em busca de um futuro incerto em São Paulo, de um “jovem que desce do norte pra cidade grande/ Os pés cansados e feridos de andar légua tirana/ De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa/ E de ver o verde da cana” (“Fotografia 3×4”).

Belchior integrava uma geração de jovens músicos cearenses que incluiu Fagner, Ednardo, Amelinha, entre outros, que ficariam conhecidos como “O Pessoal do Ceará”. Essa turma é responsável por importantes canções produzidas no Brasil entre os anos 1970 e 1980.

Mesclando blues, folk, rock, uma boa dose de melancolia, inconformismo e crítica política, sempre embaladas pelas suas origens sertanejas, muitas canções de Belchior ganharam célebres versões na voz de Elis Regina, Roberto Carlos, entre outros intérpretes.

Na sua obra, há também recordações da descoberta da vida adulta, da “camisa toda suja de batom” na sessão de cinema das cinco. Do olhar do homem simples, o “rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Do orgulho latino-americano e “por força deste destino”, preferir um tango argentino que “me vai bem melhor que um blues”.

Mesmo suas canções românticas não deixam de ter uma boa dose de crítica ao modo de vida individualista e mesquinho daqueles que vivem exclusivamente para acumular capital, como “Paralelas”, em que “no escritório em que eu trabalho/ e fico rico, quanto mais eu multiplico/Diminui o meu amor”.

Delírio com coisas reais
Muitas canções do compositor cearense apresentam uma espécie de balanço sobre as experiências vividas pela sua geração. Um balanço muitas vezes duro contra aqueles que prometiam mudar o mundo, mas que, apesar de tudo, ainda preferiram viver “como nossos pais”, letra imortalizada na voz de Elis Regina.

O refrão de “Alucinação” (título deste artigo e uma das grandes canções de Belchior) mostra a postura do compositor diante da vida. Belchior não acreditava em nenhuma solução escapista, uma fuga da realidade, em crenças que nos levam ao conformismo, à alienação e à paralisia. Por isso, critica o esoterismo e as experiências alucinógenas muito utilizada por jovens de sua geração, que prometiam, supostamente, libertar a mente. Ao contrário dessa moda, Belchior tinha como a sua alucinação “suportar o dia-a-dia” e seu delírio “é a experiência com coisas reais”.

Musico Belchior em 1977. FOTO DIVULGAÇÃO.

“Uma mudança em breve vai acontecer”
Na música “Velha roupa colorida”, Belchior fala da angústia com os descaminhos do país submetido à truculência da ditadura militar. Mas esclarece que, apesar dos difíceis anos de chumbo, o melhor sempre está por vir, pois “uma nova mudança em breve vai acontecer” e “precisamos todos rejuvenescer”.

Belchior tinha razão. Nada é eterno, exceto a mudança. E como diz uma das suas mais fortes canções: “O que transforma o velho no novo/ bendito fruto do povo será/ É nunca fazer nada que o mestre mandar/ Sempre desobedecer/ Nunca reverenciar”. Nada mais atual.

Publicado originalmente no Opinião Socialista 535