Secretaria Nacional LGBT
Daqui a 16 dias, celebraremos os 47 anos da Rebelião de Stonewall, símbolo e marco da luta contra a LGBTfobia e da organização dos movimentos. Não há acaso nenhum que o maior massacre deste tipo nos Estados Unidos tenha ocorrido dentro de um lugar frequentado por LGBTs. Além disso, na boate Pulse, acontecia uma noite latina. Consequentemente, a enorme maioria dos mortos já identificados é de latinos, um setor cuja opressão é histórica nos EUA. As mortes trágicas na travessia da fronteira são uma prova disso.
Nesta segunda-feira, 13, o Estado Islâmico assumiu a autoria dos ataques. Apesar disso, é do EI que parte todo essa política de ódio. O já muito conhecido fundamentalismo criminoso, assassino e opressor do Estado Islâmico, que os sírios lamentavelmente conhecem de perto, encontrou num LGBTfóbico e xenófobo, que se disse enojado e agredido por presenciar um beijo entre gays, a parceria perfeita para mais um genocídio motivado pelo ódio à diferença, o horror à diversidade e o pavor de que todos e todas tenham o direito de viver livremente.
Sabemos que os 50 mortos e os 53 feridos de Orlando têm uma dimensão trágica e impactante. Contudo, também sabemos que eles, lamentavelmente, “apenas” acelerarão a macabra contagem que cerca a vida de LGBTs: a de mortos por dia.
O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes no país, segundo pesquisa da organização não governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU). Só em 2012, foram feitas 3.084 denúncias de violência contra LGBTs no Disque 100. Como constatado pelo GGB, em 2014 ocorreram 326 assassinatos no Brasil. É um de nós que tomba a cada 27 horas. No caso de negros, o dado é ainda mais macabro: um a cada 23 minutos.
Nos EUA, a barbárie que vimos também ecoa no dia a dia. Em 2014, houve 1.017 ataques contra LGBTs (18,6% dos crimes de ódio). Mundo afora, assassinatos, perseguições, penas de morte, tortura, estupros corretivos e horrores similares fazem com que os jovens, homens e mulheres que perderam suas vidas de forma tão violenta, aterrorizadora e inaceitável em Orlando se juntem a inúmeros outros que sofreram uns tantos outros horrores.
E não é de hoje. Ardemos nas fogueiras da Idade Média. Fomos mortos para o mundo através de lobotomias e uma psiquiatria perversa no século 19. Fomos encarcerados e obrigados a trabalhos forçados, seja na Inglaterra de Oscar Wilder, seja na Cuba de Reinaldo Arenas. Fomos marcados pelos triângulos rosas nos campos de concentração nazista. Fomos caçados como bruxas medievais pelo macartismo etc.
Mas resistimos e nos organizamos. “We survived and will survive” [“Nós sobrevivemos e sobreviveremos”]. É isso que apavora fundamentalistas de toda e qualquer religião, bolsonaros, cunhas, trumps, le pens e a canalhada toda. É possível que muita gente interprete a matança de Orlando como mais um sinal do avanço destas garras brancas, aparentemente héteros e masculinas sobre o mundo.
É, na verdade, mais um sintoma da doença que se espalha pelo mundo alimentada pela ganância de 1% de endinheirados. E inegavelmente algo como o que ocorreu em Orlando causa uma revolta e uma indignação que exigem respostas imediatas e medidas ainda mais urgentes pra que coisas como essas não voltem a acontecer.
E digo mais: se depender deles, acredito que cenas de horror tendem a se intensificar. Não porque a direita e os conversadores estão nos pisoteando numa marcha implacável ou têm mais e mais visíveis cães de guarda. O cheiro fétido da barbárie que exalou de Orlando e chega até nós é prova de que a situação é grave.
Mas, se depender deles, como disse. E isso não é novidade. É a essência da história da burguesia. O crime da escravidão, os cubículos do telemarketing lotados de LGBTs, negras e mulheres invisibilizados por trás da voz ao telefone, o quarto-senzala-de-empregada, a dupla ou tripla jornada, os milhões de terceirizados e precarizados sem direitos e com salários de fome etc. São provas cruéis de como a burguesia desde sempre sabe que para explorar mais, tem que oprimir ainda mais.
Pressionados pela crise econômica e sem pestanejar na disposição de fazer com que os de baixo paguem por ela, além de superexplorar os(as) que são historicamente marginalizados(as), os canalhas ainda alimentam a divisão da sociedade e, principalmente, da classe trabalhadora, impondo fronteiras raciais, de gênero, de orientação sexual etc., sabendo o quanto isso contribui para minar nossas lutas e debilitar a unidades entre oprimidos e explorados. Tentam fazer com a cabeça das pessoas o que fazem com os muros e cercas de arame farpado que envergonham as fronteiras da Europa para barrar a maior onda de imigrantes e refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.
Por isso, como escreveu Marx em 1870 em relação ao racismo e à xenofobia na Inglaterra, a burguesia, mesmo aquela que se diz democrática, não mede esforços nem meios para alimentar preconceitos, discriminações e contaminar corações e mentes de jovens, trabalhadores, mulheres, negros e negras, indígenas etc., com um antagonismo que “é mantido vivo artificialmente e é intensificado pela imprensa, o púlpito, os jornais cômicos, em resumo por todos os meios à disposição das classes dominantes. Esse antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de toda sua organização. É o segredo pelo qual a classe capitalista mantém seu poder. E essa classe é plenamente consciente disso”.
É daí – pra não falar da ação direta das forças de repressão em todos os seus formatos, inclusive as paramilitares, milicianas etc. – que brotam caras como o de Orlando. Desnecessário dizer que a forma de massacre é lamentavelmente típica da pra lá de adoentada sociedade norte-americana. Contudo, seu ato abominável e imperdoável tem raízes na podridão de um sistema degenerado que gera excrescências como o Estado Islâmico, os supremacistas brancos dos EUA, os sequestradores e estupradores de crianças como de Boko Haram na Nigéria.
Esta é apenas uma ponta da polarização que cada vez mais intensamente caracteriza o mundo. Há muito aprendemos a lutar e resistir. Carregamos no nosso sangue – o mesmo que, com frequência doentia jorra nos becos escuros, nas boates atacadas, nas esquinas mal iluminadas – o ousado pioneirismo de Magnus Hirschfeld, que criou, em 1897, o Comitê Científico Humanitário para lutar contra o Parágrafo 175, que criminalizava a homossexualidade na Alemanha.
Temos em nossas veias a coragem de Oscar Wilde, que se agarrou à sua dignidade e poesia mesmo quando preso. Temos a ferocidade glamorosa de esfuziante Madame Satã. Temos as garras de uma Angela Davis. Somos obstinados como Safo. Seguimos o ciclo que transcende os gêneros de Oxumaré. Temos a disposição de luta e a consciência da trans negra Marsha P. Johnson, que esteve na linha de frente de Stonewall. Temos a explosão criativa do genial Paulette do Dzi Croquetes e a audácia, mesmo que cercada de dor e melancolia, das pioneiras do jazz e blues ‘Ma’ Rainey e Bessie Smith.
Estamos fartos. Pensando em Orlando, ficamos furiosos, indignados, tristes. Porém, lamentavelmente, na mesquinharia do capitalismo, isso praticamente faz parte de sermos quem somos, vivermos como vivemos, da forma que queremos ser. E algo com que nossos algozes não contam ou sempre tentam reprimir e sufocar é que não nos dobramos.
Não estamos dispostos a voltar para os guetos. Não viveremos com medo. Não queremos cura. Aliás, não temos cura mesmo: somos tão fortes que nenhum vírus pode nos exterminar. E não, também não serão tiros e bombas que o farão.
As reações ao massacre mundo afora demonstram que temos força e aliados. Mulheres, como estamos vendo no Brasil, tomam as ruas, desafiam o patriarcalismo, que as quer “belas, recatadas e do lar”, escracham o machismo que as quer violentar e assediar. Negros e negras, de forma muito especial, fazem as periferias e quebradas ferverem a cada um dos seus que é assassinado. Norte-americanos ganham as ruas pra que ninguém esqueça que vidas negras importam. Levantam seus punhos como Panteras, libertam seus crespos como se rompessem correntes e retomassem o tortuoso fio de nossa história e erguem seus blacks, esticando com garfos os fios que, unidos e entrelaçados. gritam: Black Power!
Sabemos que é possível e necessário se aliar aos demais trabalhadores pra mudar o mundo. Que podemos sonhar com liberdade e temos a ousadia de construí-la contra tudo e todos. É por isso que acredito que a melhor homenagem que podemos prestar aos 50 mortos de Orlando e os tantos outros feridos, seus familiares, amores e amigos é reafirmar nossa disposição para lutar.
Hoje, nosso arco-íris está manchado pelo vermelho-sangue. Porém sou daqueles que acredita que ele ainda brilhará intenso. Não coberto, mas ao lado das bandeiras vermelho-revolução.