Uma das maiores polêmicas nas redes sociais durante o Carnaval envolveu a escolha de uma fantasia por parte de um casal de Belo Horizonte. Fernando e Cintia Bustamante decidiram sair num bloco como os personagens Aladdin e Jasmine, e vestiram seu filho, Mateus, como o macaco Abul.   
 
A foto que circulou como rastro de pólvora e o debate se transformou num alvoroço que, a princípio, dividiu opiniões entre aqueles e aquelas que defendem os interesses e direitos de negros e negras, e os que saíram na defesa das “boas intenções” do casal. Isso pra não falar dos racistas de sempre que se aproveitaram da situação para, numa mesma tacada, negar o racismo e destilar seu ódio.
 
Dizemos “a princípio” porque tudo que envolve o debate racial é muito mais complicado no maior país negro fora da África e onde o mito da democracia racial fez enormes estragos na consciência da população. Uma complexidade que, evidentemente, não pode servir pra minimizar ou mascarar o debate. Muito pelo contrário. Tem que ser considerada para que possamos colocá-lo em seu devido lugar, identificar nossos reais inimigos e opressores e, acima de tudo, adotar perspectivas e traçar políticas efetivas no combate ao racismo.   
 
Quando as “boas intenções” naufragam na opressão
De imediato, é preciso que se diga que tudo que iremos discutir abaixo não tem nada a ver com os setores da sociedade que conscientemente, particularmente nas classes médias, se utilizam do racismo para garantir seus privilégios individuais. Esse não nos parece ser o caso do casal nem o centro do debate. 
 
Mas o fato é que muitos dos que se manifestaram nas redes sociais transformaram o casal em alvo preferencial de acusações e, em muitos casos, ofensas e ameaças. Nós também estamos entre aqueles que acreditam que os pais não devem ser poupados de críticas. Erraram, e erraram feio. 
 
Mas, diferente de muitos setores, inclusive dos movimentos negros, acreditamos que o debate deva ir para muito além das responsabilidades individuais e deva possibilitar a reflexão sobre como o mesmo casal que tomou a louvável decisão de adotar um menino negro (em um país onde duas em cada três crianças que esperam por adoção são afrodescendentes e, de forma declarada, 40% das famílias só queiram crianças brancas) pode fantasiá-lo como um macaco sem pensar no significado disto. 
Em sua defesa, o pai do garoto postou um texto de desculpas, afirmando que “muitos podem ver um macaco na fantasia de ontem; eu vejo o melhor amigo do Aladdin, que vai conhecer o mundo ideal com ele e a Jasmine. Sem preconceitos e com muito, mas muito amor. Viva a diversidade!”.
 
Não temos o porquê duvidar das intenções nem da sinceridade do pai. Contudo, acreditamos que, se nada de bom possa ser tirado deste episódio, ao menos deve servir para que o casal perceba que eles terão muito o que aprender. 
Eles têm que entender que, para além (ou como expressão) do amor que dediquem à criança, terão que passar a ver o mundo também através do olhar e da percepção do pequeno Mateus que, se crescer como um negro consciente, certamente irá sentir algo entre um desagradável “desconforto” e uma gritante indignação diante desta mesma foto, principalmente levando em consideração que, mais cedo ou mais tarde, o garoto será chamado de “macaco” de forma agressiva e humilhante. 
 
Terão que entender que não é possível que negros e negras vejam “graça” ou fiquem quietos diante de uma atitude que carrega consigo séculos de uma ideologia criada sob medida para justificar os crimes da escravidão: a tentativa de nos “animalizar” e de nos “coisificar”. 
Irão ter que lidar com o fato de que, pra além das boas intenções individuais, existe o racismo e suas ideologias e que qualquer coisa que possa, de forma direta ou indireta, reforçar ou ajudar a perpetuar esta ideologia – como trazer à mente das pessoas a relação negro(a)/macaco(a) – cumpre um enorme desserviço e alimenta a opressão. 
 
Por trás e pra muito além da fantasia
Contudo, não achamos que eles sejam os nossos principais e reais “inimigos” nesta história. Para os marxistas, é sempre importante considerar as diferenças (sempre complicadas) entre “ser racista” e reproduzir as ideologias que sustentam o racismo.
 
Como já foi destacado pelo historiador marxista Eric Williams (em “Capitalismo e escravidão”, de 1944) o racismo tem uma origem de classe. Foram as elites dos anos 1500, e particularmente a burguesia desde então, que tentaram transformar “o aspecto físico dos [negros/as], seu cabelo, sua cor e dentição, suas características ‘subumanas’ tão alardeadas” em justificativas para o tráfico negreiro, a escravidão e todas as formas de superexploração impostas a negros e negras.  
 
Em suma, o racismo é, antes de tudo, uma ideologia disseminada pela classe dominante e sempre esteve a serviço de seus interesses e lucros. É a burguesia – empresários, banqueiros, latifundiários etc. e seus agentes nos governos, instituições e estruturas do Estado – que se utiliza das diferenças (de raça, gênero, orientação sexual etc.) para transformar diferenças em desigualdades e, desta forma, superexplorar setores inteiros da população. 
 
Mas o problema que o episódio trouxe à tona é que esta ideologia burguesa foi incutida e naturalizada na cabeça dos oprimidos, dos trabalhadores, dos pobres, dos explorados, dos marginalizados que a reproduzem muitas vezes mecanicamente, outras com a ilusão de que isto irá lhes garantir algum privilégio.   
 
Por isso, uma de nossas principais tarefas, no que diz respeito à população em geral, tem a ver com o combate à consciência distorcida pelo sistema educacional eurocêntrico, os meios de comunicação, as igrejas, a família etc. etc. Deformações que, certamente, estão por trás da lamentável escolha do casal mineiro. 
 
Contudo, não acreditamos que seja correto colocar um sinal de igual entre a burguesia que utiliza de seu poder econômico e político para propagar ideologias que garantam seus interesses e aqueles ou aquelas que as reproduzem. E, mais um vez, não estamos falando, aqui, daqueles que fazem isto de forma consciente e em defesa de privilégios, sejam eles quais forem.
 
Não achamos correto, por exemplo, centrar nossa luta contra o machismo em uma mãe que enche a cabeça de suas filhas com contos europeus que reforçam a submissão da mulher e a espera do príncipe (branco) encantado. Como também, não acusamos de racismo uma família negra pelo fato de que sua filha queira comemorar o aniversário vestida como a princesa Elsa (de “Frozen”), ao invés de receber os amiguinhos como a Rainha Nzinga.
 
Isso não descarta, de forma alguma, a necessidade de que façamos um debate com estas pessoas, criticando-as com a convicção e a dureza necessárias. Mas não é nosso objetivo “destruí-las”. Queremos ganhá-la para nossa luta. Queremos e devemos, com a paciência necessária, disputar seus corações e mentes e arrancá-las da dominação ideológica da burguesia e compreendam que ao reproduzirem preconceitos, elas não estão fazendo nada mais do que contribuir com aqueles que nos oprimem e exploram. 
 
Democracia racial: a pior das fantasias
Por isso, mesmo que não poupemos a família de críticas, para nós o centro do combate deve ser os estragos causados pelo “mito da democracia racial” que, a partir das obras de Gilberto Freyre (particularmente “Casa Grande & Senzala”) criou a ideologia de que, aqui, há igualdade entre negros e brancos, o racismo sequer existe ou somos nós, negros e negras, que “vemos problemas em tudo”. 
 
Uma farsa tão profunda e bizarra que faz com que os pais de uma criança negra não vejam o menor problema em vesti-la como macaco ou que gente muito próxima de nós em termos sociais, econômicos e, inclusive, raciais (na família, no trabalho, na escola ou na vizinhança) exponha as mulheres negras que decidem liberar seus crespos a questões para lá de ofensivas: “Dá pra pentear? Por que não alisa, tá sem grana? Você está com algum problema?”.
 
Um mito que não se sustenta na realidade e entra em aberta contradição com as humilhações, as tentativas de hipersexualização, “coisificação” e animalização de nosso povo; a demonização e incitação de ódio às religiões de matriz africana etc. etc. 
Coisas que são cotidianamente reproduzidas pela população sem que se entenda que tudo isto não só implica em dores e sofrimentos para negros e negras como também beneficia de forma direta nossos exploradores e opressores. 
 
Afinal, quem “ganha” com esta história são as forças de repressão (a PM na linha de frente) que, nos tratando como animais ou coisas, fazem com que a chance de um jovem negro ser morto seja 154% maior do que a de um branco. São os patrões que, por nos verem como “menos gente”, mantém a renda média nacional de um negro 40% menor do que a de um branco. 
 
São aqueles que se utilizam da nefasta combinação de machismo e racismo para fazer com que nossas mulheres não só sejam vistas como “a carne mais barata do mercado” (vide a asquerosa ideia da “Globeleza”), mas, também, sejam 37,5 % das que chefiam famílias, 60% das que recebem até um salário e 23% das que exercem serviço doméstico ou similar. 
 
Criada sob medida para, como lembra Clóvis Moura, servir como amortecedor tanta da consciência de raça quanto de classe, a democracia racial serve como um véu para encobrir as manipulações da burguesia e, simultaneamente, deixar o povo (como o casal mineiro) cego para os estragos que podem ser feitos a partir da negação de que vivemos num mundo racista.
 
Derrotar o mito, desfazer as fantasias
Nas últimas décadas, os movimentos negros têm feito bastante barulho, protagonizado inúmeras lutas e dado visibilidade contra as manifestações racistas. Isto, inegavelmente, tem contribuído para elevar a consciência racial no Brasil e questionar o mito da democracia racial. A reação ao episódio também tem a ver com isto. 
 
É bastante significativo que estejamos vivendo um momento de reafirmação da identidade negra e resgate da autoestima, de nossas tradições, culturas e religiões, bem como de nossos heróis e referências, como Zumbi, Dandara, Luiza Mahin, Solano Trindade, Carolina de Jesus e tantos outros. Como também é muito progressivo que as pessoas não vejam como “natural” o fato de fantasiar um garoto negro de macaco. 
 
Não temos dúvida de que temos que denunciar e combater todas as formas de opressão e a reprodução das ideologias machista, racista ou LGBTfóbica em qualquer canto que surjam e por parte de quem quer que seja. Mas, também, não podemos perder o foco. Temos que saber identificar o inimigo comum tanto dos setores oprimidos e marginalizados em particular quanto do conjunto da classe trabalhadora: o Capital. 
 
A postura do casal foi um erro. Isto é um fato. Mas devemos entender que esta é uma forma individualizada de como o racismo se revela. Diante destas pessoas e de tantos outros casos cotidianos nossa batalha e pra ganhar os corações e mentes para que elas não só entendam o porquê do enorme erro que se comete a reproduzir este tipo de coisa.
 
Mas, para que construamos um mundo em que isto sequer passe pela cabeça das pessoas é preciso muito mais. É preciso cortar o mal pela raiz. É necessário lembrar, como já defenderam Marx e Malcolm X, que “não há capitalismo sem racismo”.