No início de dezembro, as sessões da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional viraram notícia. Em uma sessão especial convocada pelo kirchnerismo antes da mudança de composição das câmaras, a FPV (Frente para a Vitória) levou à votação mais de 90 projetos de lei na ausência da oposição patronal (PRO, Frente Renovadora, PJ dissidente, Partido Socialista), que se negou a garantir o quórum para iniciar a sessão.

A notícia relevante foi que, mediante a ausência de 10 deputados do seu próprio bloco, os setores governistas contaram com o apoio dos cinco deputados da centro-esquerda (Unidade Popular, Livres do Sul e Projeto Sul) e dos três deputados da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT, por sua sigla em espanhol): Pablo López do PO (Partido Operário), Nicolás Del Caño e Myriam Bregman do PTS (Partido dos Trabalhadores Socialistas). Isto é, diante da crise de um kirchnerismo que está de saída, a atuação dos deputados da FIT foi decisiva para que se pudessem aprovar as leis apresentadas pelo governo. De fato, foram aliados, chegando inclusive a votar juntos alguns desses projetos, argumentando que eram “leis favoráveis para os trabalhadores”.

Um debate necessário
A nosso ver, isso é um grave erro, tanto ter dado o quórum quanto ter votado as leis com o governo. E é o oposto do papel que os deputados dos partidos que se reivindicam revolucionários devem desempenhar quando se trata do terreno do inimigo, como é o parlamento desta democracia que sustenta interesses dos banqueiros e dos empresários.

Na verdade, essa tendência não é nova. São apenas algumas expressões que confirmam que, na medida em que o espaço político eleitoral da FIT vai se consolidando – algo que sem dúvida é progressivo –, as forças políticas que a compõem cada vez expressam uma maior adaptação às regras do jogo do próprio sistema democrático burguês. Ou seja, enquanto um setor do ativismo operário e juvenil do país começa a avançar para posições de enfrentamento com o capitalismo, o imperialismo e o corrupto e fraudulento regime democrático burguês que os mantém, os partidos integrantes da FIT vão no sentido contrário, canalizando esse movimento progressivo para a confiança no próprio regime.

Enquanto a presença da FIT cumpre um papel progressivo ao apresentar para os trabalhadores uma alternativa eleitoral com independência de classe, sua direção cumpre um papel regressivo, com uma orientação reformista. Essa é a questão de fundo que queremos debater.

E cabe esclarecer que nossas considerações se aplicam às direções das três forças que compõem a FIT. Ou seja, inclui o PTS, o PO e a Esquerda Socialista (IS, por sua sigla em espanhol).

Os revolucionários votam leis com a patronal?
Assim, em uma jornada sem dúvida vergonhosa, o mais importante foi a votação dos projetos de lei a favor dos trabalhadores. Projetos aos quais, no entanto, não foi possível incorporar as melhorias propostas pelos deputados da Frente de Esquerda” (Daniel Satur, La Izquierda Diario, PTS, 27/11/2015). “O bloco da FIT vai permanecer até garantir que sejam aprovadas cada uma das leis a favor da classe trabalhadora”, foi a justificativa de Pablo López no comunicado publicado pelo PO em 26/11/2015.

Quer dizer, ambos acreditam que a FPV, o bloco patronal governante, apresentou “leis operárias” ou “favoráveis aos trabalhadores” e por isso esses deputados da FIT a apoiaram politicamente com seu voto.

Isso é o oposto às recomendações de Lenin e às resoluções do 2º Congresso da Internacional Comunista de 1920, que todas as forças que compõem a FIT continuam reivindicando, e que afirmava em uma de suas teses sobre a tática revolucionária no parlamento que: “Os deputados comunistas devem subordinar toda sua atividade parlamentar à ação extraparlamentar do Partido. Devem apresentar regularmente projetos de lei concebidos para a propaganda, agitação e organização revolucionária, e não para serem aprovados pela maioria burguesa.

É verdade que, como conseqüência da mobilização e em determinadas circunstâncias, algum setor burguês pode impulsionar alguma medida “progressiva” entre aspas, como dizia Trotsky, para os trabalhadores. Nesses casos, como aconselhava o revolucionário russo reivindicado por todos nós, quando algum setor burguês a ataca pela direita nós a defendemos. Mas nunca lhe damos nosso apoio político, tal como expressa o voto favorável e unificado em uma determinada lei, porque essas medidas estão a serviço de um plano profundamente reacionário. Por exemplo, estaremos na rua lutando se o macrismo [do presidente Macri] impulsionar a reprivatização das empresas que foram estatizadas. Faríamos a mesma coisa se fosse uma tentativa do próprio kirchnerismo. Mas isso não significa, de modo algum, que tenhamos lhe dado nosso apoio político votando a favor dessas nacionalizações extremamente limitadas.

Para que vamos ao parlamento?
Mesmo quando fiquem em absoluta minoria, e apesar de que inicialmente esta atitude não seja compreendida por um setor valioso de trabalhadores devido à consciência reformista que este sistema constrói diariamente, nossos deputados devem apresentar no parlamento seus próprios projetos, denunciando o conjunto deste plano reacionário. A mensagem deve ser clara: nós, trabalhadores, nunca temos um projeto político comum com os partidos das patronais e o parlamento burguês nunca votará melhorias de fundo para os trabalhadores, por isso nossos projetos não são aprovados. Porque, se não fosse assim, não estaríamos contribuindo para demonstrar que este parlamento é um verdadeiro “covil de ladrões” e que não há tarefa mais importante para os revolucionários do que denunciar de forma implacável que nenhuma lei desta instituição patronal pode ser benéfica para os trabalhadores.

Nossa tarefa é a de convencer pacientemente e mobilizar a classe trabalhadora e os setores populares para derrubar todas as instituições por meio das quais a burguesia imperialista exerce seu poder e substituí-las pelos organismos que representem o poder dos trabalhadores.

A confusão que este desvio reformista está trazendo é tanta que, desde a obtenção dos cargos legislativos em 2013, uma palavra de ordem muito comum das três forças integrantes da FIT diz “deputados dos trabalhadores, agora que a crise seja paga pelos patrões”, como se bastasse ter deputados de esquerda para derrotar a crise. Nesse sentido, também é equivocado que o PO comemore um projeto sobre a violência contra a mulher da Legislatura da Cidade de Buenos Aires, fruto do consenso entre o PO e o kirchnerismo, ou quando o PTS votou a favor das leis de creches comunitárias apresentadas pelo kirchnerismo na Legislatura da Província de Buenos Aires. Ambos justificaram essas ações dizendo que traziam benefícios para os trabalhadores, apelando a uma “lógica reformista” para justificar a aprovação de leis propostas ou feitas em comum acordo com os partidos patronais. Finalmente, à luz dos últimos acontecimentos, consideramos importante abrir este debate entre todos os companheiros e companheiras que veem com expectativa o avanço eleitoral da FIT para não transformar esses avanços em uma nova frustração.

Notas:

1. Ver artigo completo em http://www.laizquierdadiario.com/Nuestro-unico-compromiso-es-con-los-trabajadores

2. Ver o comunicado completo em http://www.po.org.ar/comunicados/parlamentarios/nos-quedamos-hasta-garantizar-que-se-voten-las-leyes-obreras

3. Ver artigo completo em  http://www.po.org.ar/prensaObrera/1389/mujer/avanzo-el-proyecto-del-frente-de-izquierda-para-victimas-de-violencia-de-genero. Neste artigo, o PO reconhece que “a iniciativa que foi aprovada surge de um compromisso entre nosso projeto e outro que o kirchnerismo apresentou posteriormente”.

 

Uma polêmica que já se expressou na campanha

Em novembro, o site “Esquerda Diário” do MRT (Movimento Revolucionário dos Trabalhadores) do Brasil, partido ligado ao PTS argentino, polemizou com as primeiras conclusões do balanço eleitoral da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores que publicamos em nosso jornal Avanzada Socialista nº 98.

Curiosamente, em um artigo assinado por Simone Ishibashi, esta organização nos acusa de “não reconhecer as conquistas da FIT” e polemiza com nosso partido dizendo que “de acordo com o PSTU, os resultados da FIT haviam sido ‘fracos’ pela apresentação de ‘listas divididas’ entre PTS e PO nas PASO (Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias), e a campanha teria sido de ‘menos conteúdo’. Também reclamam que os candidatos do PSTU não haviam figurado [nas eleições gerais], quando integraram a lista dirigida por Altamira nas PASO”.

Em primeiro lugar, devemos esclarecer quais são os verdadeiros debates sem tergiversar as posições. Nosso balanço dos resultados da FIT é claro. É uma campanha da qual nosso partido fez parte, fazendo tudo o que esteve ao seu alcance para conseguir o “ótimo resultado eleitoral” obtido. Este inclusive é o título do artigo com o qual eles querem polemizar. Nesse mesmo artigo, afirmamos, entre outros aspectos, que: “O resultado obtido, somado aos resultados alcançados ao longo de 2015, consolida-a [a FIT] como a alternativa política eleitoral de esquerda no país e confirma que existe um espaço para disputar pela esquerda a ruptura com o kirchnerismo que se expressou nestas eleições”.

E, por outro lado, defendemos que “diante das três propostas majoritárias da política do ajuste (FPV, Cambiemos, UNA) que arrastaram atrás de si a maioria do eleitorado, a FIT conseguiu resistir à pressão do voto útil e se colocar como a única proposta diferente, com um programa alternativo que propunha uma saída operária e popular para a crise nessas eleições. E este resultado é uma conquista para os trabalhadores que devemos valorizar”.

A polêmica que realmente existe se refere à orientação equivocada e reformista que as forças que integram a FIT deram à campanha eleitoral, do erro de ter utilizado as PASO antidemocráticas como o mecanismo para dirimir as diferenças que apareceram pelas candidaturas e a proscrição de candidatos apelando para um método desleal e burocrático.

As tendências eleitoreiras das forças “legais” da FIT
A Frente de Esquerda e dos Trabalhadores nasceu no ano de 2011 como consequência da reforma política antidemocrática impulsionada por Cristina Kirchner que, ao impor a cláusula de barreira restritiva nas eleições Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO), obrigou as forças integrantes a se unirem em uma frente para poder participar das eleições e não perder a legalidade de cada partido. Esta frente aproveitou a ruptura política pela esquerda de um setor da população com o kirchnerismo e se transformou em um fenômeno político que foi se consolidando no terreno eleitoral.

Mas, além do acordo programático constitutivo, a FIT funciona meramente como um “acordo eleitoral” que gira em torno da apresentação de listas em todas as eleições do país onde a lei permite, e é onde se resolve a “distribuição” das candidaturas e seus respectivos postos parlamentares entre os partidos que a constituem. Em raras ocasiões se realizam apresentações políticas comuns, como frente, e sua atividade fora das eleições é quase nula.

Não obstante, desde sua origem, foram constantes o desprezo e o destrato por parte das direções das forças integrantes da FIT em relação a todas as organizações que o regime proíbe por não terem legalidade, o que comprova o critério “eleitoreiro” imposto por essas forças políticas. Impõe-se uma prática sectária, mesquinha e autoproclamatória segundo a qual a diferenciação no interior da frente é estipulada pelas regras que o próprio regime democrático burguês determina. Por exemplo, apesar de ter entrado na FIT e integrado suas listas de candidatos desde sua fundação em 2011, o PSTU e outras organizações jamais foram convocados para debater os pontos programáticos ou o planejamento das campanhas eleitorais.

O fato de não respeitarem os acordos (impostos por eles mesmos) quanto à localização dos candidatos do nosso partido nas listas, sem sequer nos consultar, que o artigo do Esquerda Diário aponta como uma “queixa”, é outra mostra da pressão que a legalidade burguesa exerce nessas organizações.

Essa metodologia burocrática e desleal, alheia à classe operária, muito comum nos “conchavos” e “brigas por cargos” dos partidos patronais e da burocracia sindical, deve ser abolida entre aqueles que se reivindicam revolucionários.

Não adianta colocar a culpa um no outro sobre a responsabilidade do fato. É preciso se posicionar e combatê-lo com firmeza.

Como já afirmamos, é inegável que as propostas político-programáticas ficaram relegadas para promover a figura de algum candidato. E, ao contrário das resoluções da III Internacional orientada por Lênin (que todas as forças integrantes da FIT dizem defender), a “febre” eleitoreira levou a que o centro da campanha fosse a obtenção de deputados de esquerda, em que se multiplicaram os cartazes com o “rosto” dos candidatos sem muitas propostas (competindo entre as forças da própria frente e inclusive uns colando seus cartazes sobre os dos outros) e os panfletos informando a quantidade de votos que faltava para eleger nossos candidatos e quase sem conteúdo político.

É claro que valorizamos a obtenção dos cargos parlamentares da FIT, mas isso não pode ser o centro da atividade dos revolucionários nas campanhas eleitorais.

Por outro lado, “a força dos trabalhadores, das mulheres e da juventude”, “o aborto legal, seguro e gratuito” ou que “um deputado ganhe o mesmo que uma professora”, que a própria nota reconhece como os eixos de campanha, são consignas democráticas muito importantes que todos reivindicamos, mas se esquece de mencionar que há várias forças políticas patronais de nosso país que propõem coisas similares. Ou seja, apesar de importantes, nunca podem ser eixos de uma campanha que se reivindica socialista e revolucionária. O que ninguém propôs, porque certamente poderia perder alguns votos, é a necessidade de deixar de pagar a dívida externa e de romper todos os acordos com o imperialismo, a nacionalização dos bancos e do comércio exterior, a necessidade de reestatizar, sob controle dos trabalhadores, todas as empresas multinacionais que saqueiam nossos recursos sem nenhuma indenização e que, para isso, é necessário um governo dos trabalhadores e do povo que aplique um plano operário alternativo.

Lamentavelmente, apesar de haver alguma menção em algum momento, essas propostas que são parte do acordo programático da FIT não foram os eixos escolhidos por aqueles que orientaram a campanha. Mas para o PSTU foram. Desse modo, as forças integrantes da FIT não cumpriram com o principal objetivo dos revolucionários ao se apresentarem nas eleições: levar o programa revolucionário a milhões de pessoas.

Por isso, dizemos que não aproveitamos a oportunidade histórica de contrapor de forma taxativa e contundente nossas propostas programáticas diante dos milhões de trabalhadores que acompanharam o debate presidencial.

Nosso candidato presidencial nunca rompeu o esquema e se posicionou apenas como uma esquerda moderada no terreno eleitoral. Os elogios e o destaque da imprensa representante dos empresários, como o jornal O Estado de São Paulo, citados na polêmica – o site Esquerda Diário fez algo similar na Argentina com as repercussões das falas de Del Caño nas corporações jornalísticas -, sobre o novo papel da esquerda, longe de nos confortar, deve nos preocupar. Pelo contrário, representa um alerta sobre o avanço da “democratização” do discurso da FIT e sua perigosa adaptação à lógica eleitoral reformista.

Por isso, sem deixar de valorizar o resultado obtido, continuamos defendendo que o desenvolvimento da campanha eleitoral escolhida pelas três forças “legais” da FIT não teve nada a ver com uma campanha orientada a partir de uma perspectiva operária e revolucionária, esvaziando-a, assim, de conteúdo político. É por isso que insistimos na importância de abrir este debate entre os milhares de lutadores que tiveram a FIT como referência nas últimas eleições.

Notas:

1. Ver artigo completo em http://www.esquerdadiario.com.br/Por-que-setores-da-esquerda-se-recusam-a-reconhecer-as-conquistas-da-FIT

2. Ver artigo completo em http://litci.org/pt/mundo/america-latina/argentina/otimo-resultado-eleitoral-da-fit/

3. Idem

4. Por exemplo, Victoria Donda, deputada eleita pela Frente “Progressistas”, encabeçada pela ex-radical Margarita Stolbizer, utilizou o tema do aborto e a força das mulheres como eixo de sua campanha.

5. Como dizem as Teses sobre o Partido Comunista e o Parlamentarismo aprovadas elo 2º Congresso da III Internacional dirigida por Lenin em 1920: “A campanha eleitoral deve ser levada a cabo não no sentido da obtenção do máximo de mandatos parlamentares, mas no sentido da mobilização das massas sob as consignas da revolução proletária”.

Tradução: Flavia Bischain