Leia entrevista com a diretora de cinema Carol Rodrigues, autora do premiado “A boneca e o silêncio”

Marcela é uma adolescente negra da periferia de 14 anos. Perdeu a mãe quando ainda era criança, mora com o pai e os irmãos, e em casa é responsável pelos trabalhos domésticos. Marcela namora João e, juntos, se vêem diante de uma gravidez indesejada. Mas Marcela sabe a quem a gravidez indesejada afetará mais profundamente. Sabe que é a sua vida que nunca mais será a mesma. Diante da decisão do aborto, Marcela está sozinha frente a todas suas dúvidas e medos.

A história da Marcela, tão comum a todas as mulheres, é a história da personagem do filme A boneca e o silêncio, de Carol Rodrigues. Todas nós conhecemos uma Marcela e já conversamos sobre aborto com pessoas a favor e contra. O aborto, esse tabu das campanhas eleitorais, é a quinta causa de morte de mulheres no Brasil, gerador de um verdadeiro feminicídio.

Diante dessa realidade, o filme de Carol Rodrigues é, mais do que atual, necessário, frente a um cenário no qual Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara de Deputados, declarou que a legalização do aborto só entraria em pauta por cima de seu cadáver, ignorando a morte de milhares de mulheres.

Confira o papo que tivemos com Carol sobre o filme e a realidade retratada.

Carol, a construção do personagem da Marcela reflete um drama diário e que é até mesmo debatido de maneira aberta nos dias de hoje, a gravidez na adolescência. Só que a Marcela reflete uma realidade e usa uma saída que não tem eco. Vemos uma adolescente com muita responsabilidade na manutenção do lar, mas ainda frágil, com elementos infantis. Que muitas Marcelas são essas que te inspiraram?
De fato, foram muitas as Marcelas que me inspiraram. O filme reúne experiências minhas e de outras garotas com as quais tive contato enquanto ativista do movimento feminista: jovens mulheres, recém saídas da infância, que ocupavam papéis centrais em suas famílias, tinham responsabilidades adultas, vida sexual ativa e, ao mesmo tempo, brincavam com bonecas e outros brinquedos. Muitas delas usavam esses brinquedos como confidentes dentro de um contexto social opressor no qual se sentiam sozinhas. Se não era para falar de uma experiência pela qual haviam passado, era para comentar de alguém muito próximo. A maior parte delas sabia alguma receita de chá abortivo ou com quem falar pra conseguir cytotec, o remédio usado para evitar úlceras gástricas que pode induzir ao aborto. Em muitas das conversas era ressaltado o sentimento de culpa. Em outras, de alívio. Algumas meninas haviam perdido alguém próximo, uma amiga, uma prima, uma irmã. Enquanto moradoras da periferia, é difícil ter condições de pagar por um aborto em uma clínica clandestina “segura”. E é preciso recorrer a práticas perigosas e desesperadas que podem deixar sequelas graves ao seu corpo ou, até mesmo, sua morte.  

Essas histórias foram o ponto de partida. A inspiração, como você colocou. A partir disso, Marcela ganhou vida e sua própria história em um roteiro que foi sendo desenvolvido a partir das discussões com a equipe do filme.

A solidão da Marcela permeia todo o filme, ela perdeu a mãe ainda criança, o pai trabalha fora, tem uma relação um pouco fria com ela, embora seja visível que se preocupa com a filha. O namoro também tem esse viés, em um momento João quer construir uma família, em outra hora ele se dá conta da responsabilidade que é assumir isso. O que você quis mostrar com essa solidão que antecede a decisão de abortar ou não?
A solidão é uma das marcas mais perversas do machismo e de outras formas de opressão como a homofobia e o racismo, por exemplo. O isolamento nos enfraquece, nos definha, embaralha nossas ideias e faz com que tenhamos dificuldade de enxergar possíveis saídas pra qualquer situação de violência que estamos vivenciando. Sentimo-nos sufocadas, mas acabamos nos resignando, e aprendendo a conviver com aquela asfixia como se fosse algo normal e esperado.

Muitas vezes quando uma mulher sofre violência doméstica, por exemplo, ela sente culpa pela situação que sofre e pelos julgamentos das outras pessoas e se encarcera ainda mais naquela relação, criando uma prisão de ansiedade e depressão da qual fica cada vez mais difícil sair. Para romper o ciclo da violência é preciso receber apoio, sentir-se acolhida. Sentir-se solidarizada para ter forças para enfrentar cada passo. Caso contrário, é como se o peso do mundo desmoronasse todos os dias sobre você.

No caso da Marcela, sua gravidez precoce só acentuou seu isolamento e solidão. Na sua casa, ela ocupa o lugar da mãe nas tarefas domésticas que socialmente são relegadas às mulheres. Essa responsabilidade permanente já faz com ela tenha muito menos tempo de sociabilidade na escola, por exemplo. Além do fato de que para a maior parte das meninas, ainda é difícil falar abertamente sobre a vida sexual, gravidez, etc.


Filme de Carol é premiado no 6º FESTin, em Lisboa
 

Há um grande abismo entre Marcela, o pai e seus irmãos que são mencionados, mas nem mesmo aparecem na história. João, o namorado de Marcela, é a única pessoa com a qual ela compartilha a informação sobre sua gravidez e os seus medos. Apesar de mais velho, João é uma menino imaturo e fica perdido naquela situação. Ele declama discursos e promessas vazias, sem sequer ter coragem de enfrentar o assunto de maneira direta ou mesmo acompanhar Marcela no prédio abandonado. Ela assume a responsabilidade deles e busca alguma forma de resolver o problema sem precisar falar com seu pai. Mesmo que de maneira contraditória, ao tomar a decisão por interromper a gravidez, Marcela se torna protagonista de sua própria história. Em um contexto opressor, no entanto, esse protagonismo para uma menina como Marcela pode lhe custar muito alto. Nesse momento no filme, sob a materialidade do sangue, ela une o seu destino ao de outras mulheres de outros tempos e outros lugares no mundo. Um contraponto à solidão que parecia ser sua única forma de vida. E o único erro de Marcela, foi, justamente, acreditar que sofria sozinha.

Todas nós conhecemos histórias como a da Marcela e temos medo de nos tornarmos mais uma. O filme mostra que o aborto é uma questão de classe, quem tem condições realiza em clínicas com acompanhamento médico, quem não tem, com métodos nada seguros, mas já muito conhecido na periferia. Como foi retratar essa realidade tão dolorosa e como tem sido o diálogo com mulheres que abortaram e viram teu filme?
A questão de classe é uma discussão central na temática do aborto. Assim como a discussão racial. Digo isso porque, ainda que ilegal, na maior parte dos casos, é estimado que pelo menos um milhão de abortos seja realizado todos os anos no Brasil, representando uma das maiores causas de morte entre as mulheres, principalmente as mulheres negras e pobres que, além de serem as maiores vítimas em relação às mortes e sequelas também estão mais vulneráveis ao indiciamento criminal. Ainda assim, são as mais sub-representadas em filmes que trazem alguma personagem realizando um aborto. Aliás, as mulheres negras estão pouco presentes em todos os filmes, séries e qualquer produto na televisão. Infelizmente, ainda são raras as exceções.

É claro que um filme nunca deve ser visto como um simples retrato da realidade. Qualquer obra é antes de tudo um ponto de vista de alguém. Mas o cinema é um espaço que ajuda a formar a percepção das pessoas sobre o mundo e sobre elas mesmas. Os meios audiovisuais tendem a dar legitimidade à opressão, naturalizando comportamentos e valores que são historicamente determinados. Quando a opressão é naturalizada, as desigualdades surgidas a partir das diferenças parecem igualmente normais e não conseguimos ver a possibilidade de sua superação.

Desde o início do desenvolvimento do roteiro do filme, eu trazia essas angústias comigo. Eu queria contar essa história que geralmente é apagada, é silenciada ou transformada só em estatística. É preciso romper com o silêncio.

Quando tenho a oportunidade de apresentar o filme, procuro sempre pedir para que as pessoas venham falar comigo após as exibições. Uma professora, refletindo sobre o seu papel de educadora, disse que era preciso “ouvir os gritos silenciosos das Marcelas que habitam as salas de aula”. Esses fatos só reforçam a importância de contar a história da Marcela nesse filme e realizar espaços de discussão que permitam que nos sintamos fortalecidas.

A boneca e o silêncio | Doll and silence – TRAILER from Carol Rodrigues on Vimeo.

Em outras conversas sobre o filme, o relato de um ambiente muito masculino foi citado, com poucas mulheres dirigindo e produzindo filmes. Que desafio está posto para as mulheres que desejam fazer cinema?
Sobre o machismo e o racismo estrutural do cinema, eu acho que é importante trazer uns dados porque é comum as pessoas acreditarem que não existe esse tipo de coisa nessa área.

Tem uma pesquisa que foi feita em 2014 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Uerj, buscando traçar o perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos longas-metragens brasileiros de maior bilheteria entre 2002 e 2012. O resultado mostrou que nosso cinema ainda é branco e masculino tanto dentro como fora das telas. De mais de 200 filmes analisados, 86% foram dirigidos por homens sendo que do percentual restante de mulheres diretoras, não há qualquer mulher negra, seja preta ou parda. Dos 93 filmes brasileiros lançados ou com lançamento previsto para 2015, somente 14 são dirigidos ou co-dirigidos por mulheres, sendo 5 documentários. Do universo de 412 roteiristas envolvidos nesses mesmos filmes, somente 26% eram mulheres e, novamente, nenhuma roteirista negra. Na tela, esses dados não são diferentes e a pesquisa mostra que as mulheres negras representam apenas 4,4% das personagens dos filmes.

O cinema é uma área que é ainda bastante dominada pelos homens brancos de elite que tendem a produzir um tipo de cinema que reafirma seus valores de classe, gênero e cor divulgando estereótipos e representações enviesadas de outros grupos sociais. Claro, isso é uma tendência e, de modo algum, estou negando que é possível se produzir uma obra que represente grupos sociais aos quais não se pertence. Desde que se procure o que é próprio daquela realidade registrada, é plenamente possível ter sensibilidade para exprimir essa experiência que não é a sua.

O problema central é, justamente, o monopólio na produção de representações ainda mais atrelado ao grupo superior na hierarquia social. Infelizmente, não se trata de mais uma variedade de representação no imenso leque de diversidade dos personagens do nosso cinema. Pra maior parte da população, ainda é a única voz e forma de representação que terão acesso. Em outras palavras, a maior parte das pessoas vai formar sua percepção sobre o mundo a partir da influência direta e intensa da maneira pela qual esse homem branco de elite vê o mundo.

Existe uma atmosfera hostil e é bastante comum se sentir insegura, diminuída e infantilizada. Somos muito mais cobradas e há uma tolerância muito menor aos nossos erros. Recebemos salários menores e, ainda que tenhamos avançado nesse sentido, ainda parece haver uma certa divisão sexual das funções que empurram as mulheres para as áreas que são vistas como derivadas de tarefas domésticas, administrativas ou que não envolvem criação ou conhecimento tecnológico

E nesse contexto, o primeiro desafio que se coloca pras mulheres que desejam fazer cinema é se apoiarem umas às outras para encontrar forças para superar esse contexto inóspito. É urgente renegar o ar ferido, tomar de assalto o cinema brasileiro e produzir nossas próprias representações sobre nós mesmas e sobre nossa memória. Não só enquanto mulher, mas como mulher negra.

Pude fazer o filme devido ao edital Curta-afirmativo do Minc. Ele é fruto da pressão do movimento negro que sempre lutou contra a invisibilidade e estigmatização. Os oprimidos têm que ter acesso aos meios necessários para desenvolverem sua linguagem com suas próprias palavras que digam respeito as suas experiências no mundo e não precisem somente reproduzir as formas alheias. E é evidente que o ritmo disso acontecer é imprevisível, inconstante e contraditório. Mas nunca foi tão necessário.

Pra terminar, gostaria que comentasse um pouco de como tem sido as exibições em mostras e festivais, pois algumas exibições foram em atividades que discutiam gênero e aborto, como tem sido o retorno?
Todas as exibições até agora tem sido bastante interessantes e recompensadoras de alguma forma. Os festivais e as mostras são fundamentais para garantir a circulação dos filmes, a formação do público e, no caso dos curtas-metragens, isso ainda é mais importante. Além disso, é também um momento precioso de debate com outros realizadores e troca de experiências e projetos. Nosso filme teve a felicidade de ter sua estreia na 18ª Mostra Tiradentes em Minas Gerais. Foi exibido numa sala montada para a Mostra com 600 lugares. Foi intenso.

Um garoto que se apresentou enquanto “bastante católico” me disse que se sentia profundamente tocado pelo filme, acreditava em não podermos deixar mais tantas mulheres morrerem dessa forma e que o tema do aborto precisava ser enfrentado. Nesse sentido, em outras manifestações, as pessoas ressaltavam sobre a importância de avançar na legalização do aborto até que não existam mais tantas mortes sem nome.

O filme também participou da 3ª Mostra Itinerante de Tiradentes em São Paulo e do 8º  Encontro de cinema negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe no Rio de Janeiro/Brasil. Teve seu lançamento internacional no 6º FESTin – Festival Itinerante de Língua Portuguesa em Lisboa, onde o filme foi vencedor do prêmio de melhor curta-metragem eleito pelo público. A ida a um festival fora do Brasil foi uma experiência estimulante me mostrando que uma história tão imersa no contexto brasileiro pode ecoar em pessoas de outros lugares. Uma história de raça e classe que não se limita às fronteiras nacionais. Em setembro, o filme irá passar em um festival feminista nos Estados Unidos e em novembro na França. Em outubro, exibiremos no Entretodos, Festival de Direitos Humanos aqui em São Paulo. Para encurtar a história, o filme está encontrando o seu caminho pelos festivais e garantindo uma boa visibilidade.

Além do envio para os festivais de cinema, também estamos tentando exibir em escolas, associações de bairro, centros culturais, sindicatos, etc. Buscando sempre conciliar a exibição do filme com um debate em seguida.

Uma dessas atividades foi o debate “Mulheres, dentro e fora das telas” na UFSCar, no qual foram exibidos cinco curtas-metragens dirigidos por mulheres e cuja temática também abordava o universo feminino. Durante a discussão, o tema que mais foi ressaltado foi o machismo no cinema e as dificuldades enfrentadas durante a produção de cada curta. O filme também foi exibido durante a 1ª Virada Feminista no Centro Cultural da Juventude em São Paulo.

Aliás, se for possível, gostaria de aproveitar essa entrevista para dizer que queremos muito que o filme seja visto e discutido e deixo o convite em aberto para quem quiser exibir o filme em sua organização, sindicato, escola, associação, é só entrar em contato e tentaremos encontrar a melhor forma de garantir essa atividade: [email protected] e mandando uma mensagem pela página no facebook, facebook.com/abonecaeosilencio