Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Nesta série de artigos iremos abordar uma série de elementos vinculados à história da luta quilombola, particularmente na Serra da Barriga, focados em uma questão fundamental: o ousado projeto de autodefesa construído pelos palmarinos e que foi capaz de manter o quilombo por cerca de 100 anos. Este é o 5º artigo.

LEIA O 1º ARTIGO
Quilombos: sinônimos de organização e luta

LEIA O 2º ARTIGO
Palmares: onde tudo é de todos e nada de ninguém

LEIA O 3º ARTIGO
Autodefesa e os guerreiros e guerreiras da liberdade

LEIA O 4º ARTIGO
A fúria dos colonizadores durante um século de resistência

Depois do desastre resultante do lamentável acordo do Cucaú, os palmarinos não tinham dúvidas de que os senhores de escravos estavam preparando um novo e poderoso ataque. Diante disto, Zumbi subordinou toda a vida de Palmares às exigências da guerra: deslocou povoações inteiras para lugares de difícil acesso; colocou o povo em armas e intensificou o treinamento militar. As forjas passaram a produzir centralmente armas de guerra; os postos de vigilância foram aumentados e as fortificações reforçadas, tornando-se quase inexpugnáveis. Além disso, foram feitas investidas sobre os engenhos e cidades para obtenção de pólvora e armamento.

Todas as medidas possibilitaram que os palmarinos impusessem formidáveis derrotas às forças coloniais durante os anos seguintes. Contudo, a Coroa e os senhores de engenho estavam determinados a por um fim ao quilombo, e também estavam ser preparando para tal.

Contudo, as elites escravocratas também estavam decididas a por um ponto final nesta História e sabiam que encontrariam nos bandeirantes paulistas os melhores instrumentos para esta guerra suja.

Bandeirantes: sanguinários transformados em heróis
Praticamente não há como sair de São Paulo sem atravessar uma rodovia nomeada em homenagem a um bandeirante. A Anhanguera vai em direção ao norte do estado; a Fernão Dias segue para Minas Gerais e a Rodovia Raposo Tavares vai para o Oeste, em direção ao Mato Grosso.

País afora não é muito diferente. Há estradas, praças, ruas e monumentos por todos os cantos. E, pior, não há como abrir um livro didático sem deparar com a representação dos bandeirantes como heróis nacionais. Contudo, a história é muitíssimo diferente. Assassinos sanguinários e brutais, impiedosos em relação aos indígenas e aos negros, os bandeirantes deixavam um rastro de sangue, terror e destruição por onde passavam. Matavam de forma generalizada, estupravam mulheres e jogavam crianças aos cães.

As bandeiras eram, na verdade, os grupos paramilitares da Coroa Portuguesa, formados pelo pior tipo de gente. Algo que até os colonizadores reconheciam através de sua lógica tortuosa, como lembra Décio Freitas em “Palmares a guerra dos escravos”, referindo-se a um documento do Conselho Ultramarino onde se lê que “os paulistas [ou seja, os bandeirantes] são piores que os mesmos negros de Palmares”. Uma avaliação compartilhada pelo governador Caetano de Melo e Castro que, mesmo contratando dezenas deles, os considerava “gente bárbara, que vive do que rouba”. (p. 124)

E era exatamente desta espécie de gente que a Coroa precisava para enfrentar Palmares. Em 1687, o governador João da Cunha Souto Maior contratou o bandeirante Domingos Jorge Velho, conhecido pela sua ferocidade e falta de caráter, como inclusive atestou o bispo Francisco de Lima que escreveu que Jorge Velho “trata-se de um dos maiores selvagens com quem tenho topado”.

Temido até pelos senhores de engenho, Jorge Velho, tinha, contudo, um enorme conhecimento do sertão e, portanto, era o ideal para enfrentar negros e negras armados, treinados em táticas de guerrilha e protegidos por fortificações sólidas.

Uma guerra de extermínio
As investidas de Jorge Velho começaram, com um enorme fracasso, em 1692, quando, para preparar o ataque, o bandeirante enviou, primeiro, um grupo com mantimentos para fazerem a refeição da tropa. Os quilombolas se aproveitaram e atacaram este grupo, confiscando os mantimentos e matando os invasores. Quando chegaram ao local, o bandeirante e sua tropa não tinham nem sequer o que comer.

A segunda expedição foi bloqueada pelas fortificações e armadilhas construídas pelos palmarinos. Muitos caíram nos fojos e foram atravessados pelos estrepes e os que fugiam em desespero foram atingidos por flechas.

Os quilombolas contra-atacaram e tomaram de assalto o arraial onde o paulista estava alojado, obrigando suas tropas a se retirarem. Uma tentativa de reação foi esboçada pelo governador, mas fortes chuvas forçaram as tropas a recuar para Porto Calvo.  Neste episódio, Jorge Velho deu um exemplo lamentável de sua selvageria. Depois de ver os beneditinos recusarem a proposta de incorporar os indígenas “catequizados” às suas tropas, o bandeirante degolou mais de 200 nativos como forma de retaliação.

Nesse momento, Palmares havia se transformado em um problema de tal ordem que o famoso padre Antônio Vieira (1608 – 1697) se encarregou pessoalmente de convencer o rei Pedro II, de Portugal, a promover a completa destruição do quilombo o que em muito contribuiu para que, em 1693, fosse concentrada, em Porto Calvo, a maior expedição bélica do período colonial, composta por líderes militares, soldados, mercenários e bandeirantes deslocados de vários pontos do país, formando um tropa com cerca 9 mil homens, sob o comando-geral de Jorge Velho.

Para se ter uma ideia do significado destes números, basta lembrar que a maior batalha que havia sido travada até então no Brasil, a segunda de Guararapes, em 1649, havia mobilizado 5.500 luso-brasileiros e 4.200 holandeses.

O deslocamento da tropa, obviamente, não foi fácil e os quilombolas impuseram várias baixas nas estreitas trilhas que obrigavam os soldados a seguirem em fila indiana, criando um clima de pânico entre os invasores. De qualquer forma, eles chegaram às portas das fortificações do Macaco em janeiro de 1694.

Preparados para o combate, os quilombolas haviam construído uma cerca tríplice, dotada de redentes, guaritas e fossos com estrepes de ferro, o que, num primeiro momento, permitiu rechaçar os batedores que tentavam se aproximar do mocambo. Como citado em “Rebeliões da senzala”, muitos morreram estrangulados pelas armadilhas, outros por “armas de fogo e flechas disparadas dos baluartes” ou queimados pelas “águas fervendo e brasas, acesas” que eram lançadas por cima dos muros.

Um novo ataque foi tentado no dia 23 de janeiro, mas, mais uma vez, os invasores foram detidos e as baixas foram tantas que o bandeirante foi obrigado a pedir mais reforços. Típico de seu caráter e agressividade, antes mesmo que as novas tropas chegassem, Jorge Velho lançou uma nova investida, em 29 de janeiro.  O que também resultou em uma derrota dos invasores e uma nova debandada de soldados.

A situação, contudo, mudou radicalmente no dia 3 de fevereiro, quando chegaram às portas do Mocambo do Macaco armamentos praticamente inéditos nos conflitos militares no Brasil: canhões. Eram seis, no total. E, aí, começou o massacre. Na madrugada do dia 6 de fevereiro, o mocambo foi despertado pelos tiros dos canhões, que abriram brechas na tripla paliçada, permitindo a entrada dos invasores.

Os guerreiros de Palmares ainda tentaram um último recuo com o objetivo de surpreender os inimigos pelo retaguarda, acuado-os no desfiladeiro. No entanto, eles foram descobertos, atacados e muitos (cerca de 500, segundo Décio Freitas) encontraram a morte caindo ou se jogando no precipício. Relatos afirmam que este foi o mesmo destino de Dandara e, também, de centenas de mulheres que se lançaram com seus filhos e filhas, preferindo a morte que a volta à escravidão.

Obrigados a uma luta aberta, que não era o método para o qual eram treinados, os palmarinos sofreram pesadas perdas e a batalha se transformou em um massacre sanguinário e cruel. A ordem era que nenhum palmarino sobrevivesse. A voz corrente era que qualquer um que houvesse vivido em Palmares não poderia voltar para as senzalas pois, certamente, já “não prestava mais” e “contaminariam” os demais. Estava dado o sinal verdade para que se cometesse um dos maiores genocídios da história do Brasil, que dentre os inúmeros atos de barbárie, registrou a degola, a sangue frio, de centenas de homens, mulheres e crianças.

Assim, após três anos de cerco constante e 22 dias de sangrentos combates o mocambo do Macaco caiu. E com ele, Palmares. Os poucos que sobreviveram, inclusive Zumbi (ferido com dois tiros), se refugiaram na mata e começaram a se reorganizar. No decorrer dos quase dois anos que se seguiram, Zumbi empregou táticas guerrilheiras, fazendo várias investidas na região de Penedo. Contudo, no dia 20 de novembro, um de seus companheiros que havia sido capturado entregou sua localização depois de barbaramente torturado.

A fúria da elite dominante e vontade de transformar a derrota militar de Palmares em um exemplo ficaram evidentes no “espetáculo de terror” que foi promovido com o corpo de Zumbi. Sua cabeça foi cortada, salgada e levada, com o pênis dentro da boca, ao governador Melo e Castro. Depois, foi espetada em um poste e exposta em praça pública, para desfazer a crença, que já corria solta, de que o líder de Palmares era imortal.

Faremos Palmares de novo
Certamente todos que viram aquela cena medonha se convenceram que Zumbi estava morto. Mas, como bem sabemos, estavam enganados. Hoje, quando nos lembramos da luta de Palmares, evidentemente lamentamos a morte de Zumbi, Dandara e todos os milhares de quilombolas que alimentaram de forma tão vigorosa e bela o sonho da liberdade de todos os negros e negras que foram escravizados. O fim de Palmares ainda nos dói no peito. Mas, o que sacode nossos corações e mentes é uma outra história.

A começar pela lição de heroísmo, coragem e determinação que os palmarinos deram no decorrer de toda história do quilombo. Uma lição na qual um dos principais capítulos diz respeito exatamente à necessidade (e ao direito) que oprimidos e explorados têm de, “todos os meios necessários”, como diria Malcolm X, para defender suas vidas e lutar pela liberdade e condições dignas.

Algo particularmente válido na luta contra a escravidão, como foi defendido, quase duzentos anos depois da destruição de Palmares, por Luís Gama (1830-1882) em uma frase que sacudiu o Império: “o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa“.

E, para nós do PSTU, não há como discordar disto. O Brasil foi o país que manteve o regime escravagista por mais tempo; o último do mundo a acabar com o tráfico negreiro e abolir a escravidão. Um sistema mantido a ferro e fogo por uma minoria branca de tirânicos e brutais senhores engenhos e sustentado por um gigantesco aparato estatal, jurídico e político que garantia que negros e negras escravizados se transformasse em propriedades do amo, antes mesmo de nascerem, sendo privados de qualquer direito e podendo ser vendidos, penhorados, alugados, emprestados e, evidentemente, mortos e descartados pelo seu senhor.

Ao submeter negros e negras a todas formas de opressão e exploração, o objetivo da elite branca era “coisificá-los” e “animalizá-los”, retirando-lhes a “humanidade” e tornando-so submissos. Era a serviço desta ideia que estavam constantes e intermináveis práticas como a tortura, o assassinato, a brutalidade sádica, os estupros, as humilhações e demais formas de maus tratos.

Para além de todos os demais exemplos que poderíamos dar, a história de resistência e autodefesa dos palmarinos é exemplo determinante de como os portugueses e senhores de escravos falharam. Dar a própria vida em nome da liberdade e dos sonhos (individuais e coletivos) é um dos sinais mais contundentes daquilo que é a essência do ser humano.

Da mesma forma como mover uma guerra suja, permanente e genocida contra aqueles que lutam por justiça é uma das características mais visíveis em todas sociedades divididas em classe, como escreveram Marx e Engels em o “Manifesto Comunista”: “o poder político, falando propriamente, é a violência organizada de uma classe para a opressão de outra

A existência de uma República Negra (um verdadeiro Estado Negro), com democracia interna e propriedade comum, como era o Quilombo dos Palmares, era inaceitável. Principalmente na medida em que era desafiava a própria lógica da economia colonial, não só garantindo a sobrevivência de seus habitantes como, ainda, produzindo excedente e, consequentemente, influenciando no comércio e relações econômicas nos arredores de Palmares.

Os palmarinos tinham que ser massacrados. Numa sociedade de classes (seja aquela determinada por senhores e escravos ou patrões e empregados), os opressores buscam acabar com toda rebeldia e todo sonho de liberdade através da violência e do terror, exatamente para os explorarem de forma mais eficiente e lucrativa.

A violência, seja do regime escravocrata ou burguês, é resultado de um cálculo e de uma necessidade histórica. Sabem que não podem assegurar o seu domínio a não ser infligindo aos oprimidos um terror sistemático, o medo constante, imposto pela repressão sangrenta. O extermínio dos indivíduos e grupos mais conscientes e mobilizados de uma sociedade está sempre no horizonte dos opressores e eles nunca poupam esforços para concluir o seu plano.

Neste sentido, o extermínio do quilombo de Palmares, em 1694, guarda paralelos com o genocídio praticado contra os que levantaram a Comuna de Paris, em 1871. Tem em comum a selvageria que as elites dominantes utilizaram para exterminar os que ameaçam seus interesses e seus inimigos de classe.

Os quilombolas de Palmares ou os “communards” de Paris nos exemplos históricos de utilização da autodefesa armada contra seus opressores. Em ambos os casos com valentia e determinação. Em Palmares, particularmente, com uma genialidade e criatividade típicas daqueles e daquelas que tem que tirar sua sobrevivência do “praticamente nada”.

Produziram métodos de guerra de acordo com as condições em que viviam e impuseram vergonhosas derrotas àqueles que se pensavam “mais” em tudo: mais humanos, mais inteligentes, mais civilizados etc. Para além disso, Palmares é exemplo de que, no combate pela liberdade e na luta de classes, como nos lembra Clóvis Moura,  em “Resistencia ao escravismo”, a única resposta que os oprimidos e explorados podem dar a seus algozes é a “violência idêntica, em sentido contrário”.

E esta é uma lição da qual nunca nos esqueceremos. Da mesma foram que, ao contrário do que pensavam os invadiram Palmares e assassinaram seu povo, jamais deixaremos de celebrar suas vidas e suas lutas. Eles e elas não morreram em vão.

Cada vez que nos levantamos contra o racismo, celebramos a coragem, a ousadia e a rebeldia infinitas que aqueles homens e mulheres tiveram para lutar pela liberdade. Para além do “20 de novembro”, no dia a dia das quebradas, periferias e favelas; nas comunidades remanescentes de quilombos; nos saraus, rodas de samba ou hip hop; marchando nas ruas ou organizados em movimentos, negros e negras deste país repetem os versos de “Notícias”, de José Carlos Limeira:

Por menos que conte a História
Não te esqueço meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo

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Quilombos: sinônimos de organização e luta

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