Zumbi e Dandara representados no filme Quilombo, de 1984
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Nesta série de artigos iremos abordar uma série de elementos vinculados à história da luta quilombola, particularmente na Serra da Barriga, focados em uma questão fundamental: o ousado projeto de autodefesa construído pelos palmarinos e que foi capaz de manter o quilombo por cerca de 100 anos. Este é o 4º artigo.

LEIA O 1º ARTIGO
Quilombos: sinônimos de organização e luta

LEIA O 2º ARTIGO
Palmares: onde tudo é de todos e nada de ninguém

LEIA O 3º ARTIGO
Autodefesa e os guerreiros e guerreiras da liberdade

A história de Palmares é a história de ataques permanentes, mas também de uma resistência heróica. A quantidade e intensidade de conflitos são praticamente incomparáveis a qualquer outro processo de revoltas ou rebeliões no país. A depender das fontes de pesquisa, foram 16 ou 17 ataques, no mínimo, no decorrer dos cerca de 100 anos em que o quilombo resistiu.

O primeiro ataque de que se tem notícia aconteceu em 1602, organizado pelo governador-geral Diogo Botelho. Depois vieram Maurício de Nassau e os holandeses que, após estabilizarem a sua ocupação em 1637, enviaram a primeira expedição em 1644, formada por 1100 homens. Um efetivo considerável se comparado aos 800 utilizados na conquista do Rio Grande do Norte, dos 1100 que conquistaram o território do Maranhão e dos 1500 que fizeram o mesmo na Paraíba, como foi destacado por Décio Freitas em “Palmares: a guerra dos escravos”.

Nessa oportunidade, os quilombolas derrotaram os holandeses utilizando uma tática conhecida como “Guerra do Mato” que consistia em bloquear a passagem dos invasores com árvores cortadas, detendo-os em frente dos obstáculos, o que os transformavam em alvos fáceis para as flechas quilombolas. Mesmo assim, em 1645, os holandeses fizeram uma nova tentativa sob a liderança de Jan Blaer, um padre especialista em guerra de emboscada.

E, mais uma vez, o fracasso foi completo. Os holandeses nem sequer chegaram a avistar o acampamento dos quilombolas, pois quando os inimigos atacavam, os negros e negras recuavam; e quando os invasores estrangeiros paravam para descansar, os quilombolas faziam saques e contra-ataques relâmpagos, confiscando suplementos e armas. Uma situação que se estendeu por três meses, até Blaer, ultradesgastado, desistir.

Com a expulsão dos holandeses, em 1654, os senhores de engenho e a Coroa portuguesa retomaram a responsabilidade pelos ataques. Entre as várias expedições realizadas a partir daí, destaca-se a de 1663, que contou que contou com 200 soldados negros do “Terço dos Henriques” (em referência ao negro Henrique Dias, que teve papel de destaque na Insurreição Pernambucana).

Apesar de também não ter obtido muito resultado, o episódio merece um comentário já que é exemplar de como a luta contra a opressão e a exploração, lamentavelmente, não têm todos os negros e negras como aliados. Ou, para ser exato, também têm como inimigos aqueles que, como diria Solano Trindade (se referindo aos dias atuais), se tornam “amigos do Capital”, ou seja, das elites dominantes.

O “Terço” é exemplo de como as elites, em qualquer época, procuram cooptar setores oprimidos e explorados para defender seus interesses. No caso do “Terço”, participaram negros escravizados (seduzidos pela promessa de alforria) e livres, como o próprio Henrique Dias, cujos serviços foram pagos através da concessão de um título de fidalgo, algo extremamente raro e excepcional, já que, por lei, era expressamente proibido qualquer um que tivesse árabes, negros, índios e judeus entre seus ancestrais (até a quarta geração) recebem títulos de nobreza.


Terço dos Henriques: o batalhão negro que atacou os quilombos

Ataques e contra-ataques
Em 1664 houve uma nova tentativa e, desta vez, a expedição perdeu-se na mata, ficando andando em círculos por um mês. A de 1667 conseguiu fazer um mapeamento da área e exterminou um mocambo, mas com o estado economicamente quebrado, teve que recuar. E mais uma vez os soldados negros do Terço dos Henriques participaram destas expedições, agora sobre o comando do capitão negro Agostinho da Silva.

Uma nova tentativa foi feita 1671, quando o tenente Antônio Jácome Bezerra capturou 200 quilombolas e impôs pesadas perdas; assim como ocorreu em 1674. Contudo, os quilombolas também deram o troco atacando a cidade Porto Calvo e incendiando os canaviais da região, o que causou pânico entre os senhores de engenho.

Como foi destacado pelo autor de “Palmares: a guerra dos escravos”, por essa época, os quilombolas controlavam um amplo território do sul da Capitania de Pernambuco (que incluía parte da atual Alagoas), o que só fez aumentar a fúria dos portugueses que, em 1676, fizeram uma nova investida. Desta vez com 600 homens sob o comando do Coronel Bezerra, que conseguiu destruir vários mocambos e roças o que, contudo, não foi capaz de conter a resistência quilombola que, em um vigoroso contra-ataque, cercou e massacrou a tropa.

Essas derrotas impostas pelos quilombolas, evidentemente aumentarem o medo e, consequentemente, a fúria dos portugueses e senhores, que passaram a organizar expedições cada vez maiores. Essa nova ofensiva teve como marco a contratação de Fernão Carrilho como Capitão-Mor da Guerra de Palmares. Recompensado, depois, com o posto de governador da Capitania do Maranhão entre 1701 e 1702, Carrilho, atacou o Mocambo de Aqualtune em setembro de 1677, fazendo vários prisioneiros que, posteriormente, foram utilizados para guiá-lo até Subupira.

Avisado por sobreviventes que conseguiram escapar, o então dirigente de Palmares, Ganga Zumba, ordenou que o mocambo fosse incendiado, o que permitiu com que Carrilho ocupasse a área e aí instalasse sua base militar. Contudo, mais uma vez os quilombolas mostraram sua força: acuados pela continuidade e intensificação dos combates, os soldados do Capitão-Mor se amotinaram e desertaram em massa.

Carrilho pediu novos reforços e lançou mais uma expedição, conseguindo uma importante vitória: a morte de Ganga Muiça, um dos principais dirigentes militares de Palmares – conhecido pela Coroa, como lembra Clóvis Moura em “Rebeliões da senzala”, como o “grande corsário soberano e insolente” –, e dos “capitães de guerra” João Tapuia, Ambrósio e João Gaspar. Além disso, Carrilho empreendeu um sangrento ataque ao mocambo do Amaro, assassinando vários de seus habitantes.

Na contramão: o acordo do Cucaú
Desgastado por estes ataques e perdendo a confiança na possibilidade de resistência de seu povo, o principal dirigente de Palmares na época, Ganga Zumba, enviou uma delegação ao Recife, em 1678, para negociar com o governador, que, de imediato, lhe propôs incorporar a Colina Palmares à Coroa Portuguesa. A importância do Quilombo e, ao mesmo tempo, os esforços para cooptar o líder palmarino podem ser demonstradas pela pompa e tratamento de “chefe de Estado” com que foram dados à comitiva de Ganga Zumba, formada por 11 pessoas, entre elas seus filhos e líderes militares.

As condições do acordo eram das piores: seria delimitada uma área para os quilombolas para o Vale do Cucaú (uma região árida e exposta); os (as) negros (as) nascidos (as) em Palmares, e somente eles, seriam declarados livres; os que haviam fugido dos engenhos e fazendas deveriam ser restituídos. Como um agrado, seria permitida a comercialização com os brancos; os quilombolas passariam a ser considerados vassalos do Rei (súditos que tinham um compromisso de fidelidade e dependência em relação ao rei) e que Ganga Zumba seria nomeado “mestre-de-campo”, responsável pela ordem entre os negros, que, ainda, não precisariam pagar impostos, mas teriam que se desfazer de todas armas e equipamentos militares.

Depois de uma tensa discussão no Mocambo do Macaco, convocada para deliberar sobre o tema, parte minoritária dos habitantes de Palmares, liderados por Ganga Zumba, se transferiu para Cucaú, em dezembro de 1678. E, assim que chegaram, sentiram as restrições à liberdade e as constantes invasões feitas sob a legação de que os quilombolas estavam acobertando negros fugidos.

Dentro do Cucaú, a situação gerou uma reação imediata dos principais chefes militares (Canhongo, Amaro, Gaspar e João Mulato) que, insatisfeitos, passaram a organizar uma revolta, apoiada pelo conselho de Palmares, com o intuito de eliminar Ganga Zumba, ao mesmo tempo em que começaram a retornar para a Serra da Barriga, clandestinamente, os quilombolas que queriam sair do Cucaú.

As tensões aumentaram. Ganga Zona, irmão de Ganga Zumba, ao mesmo tempo em que abriu negociações com o Conselho Palmarino, buscou apoio no governador colonial, que cercou o Cucaú com suas tropas. Não demorou muito para que o conflito explodisse e, com apoio das tropas coloniais, Ganga Zona liderou um ataque contra os seguidores de Canhogo, Amaro, Gaspar e João Mulato, que resultou numa carnificina: os quatro líderes foram degolados, um número incerto de quilombolas foi morto e cerca de duzentos outros foram condenados à “servidão perpétua”. Em meio aos confrontos, Ganga Zumba foi assassinado, provavelmente com veneno.

Apesar da derrota, muitos conseguiram retornar para Palmares, onde Zumbi, Dandara e seus partidários haviam permanecido e os quilombolas estavam tomando providências para reconstruir os mocambos e reforçar a segurança para resistir a novos ataques. Foi nesta época que Zumbi foi aclamado o líder máximo de Palmares e Dandara uma de suas principais lideranças militares.

E também foi neste período que portugueses e senhores de escravos decidiram mover uma guerra de extermínio contra os palmarinos e, para tal, contrataram aqueles que mais entendiam de derramamento de sangue: os bandeirantes.

LEIA O 1º ARTIGO
Quilombos: sinônimos de organização e luta

LEIA O 2º ARTIGO
Palmares: onde tudo é de todos e nada de ninguém

LEIA O 3º ARTIGO
Autodefesa e os guerreiros e guerreiras da liberdade