4ª Marcha Nacional contra a Homofobia em Brasília. Foto Agência Brasil
Babi Borges

No dia 4 de junho de 2010, Lula, então Presidente da República, instituiu por decreto o dia 17 de maio como o Dia Nacional de Combate à Homofobia. A data também é celebrada em outros países. O movimento LGBT, em parte, agradeceu a conquista, mas é preciso compreender de onde vem a celebração da data que mundialmente estão tentando consolidar como Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, já que o movimento já tinha um dia de luta: o 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBT.

A OMS ao lado dos oprimidos?
Em 17 de maio de 1990, a OMS (Organização Mundial da Saúde) decidiu retirar da lista de doenças a homossexualidade. Só em 1992, a homossexualidade foi de fato excluída do CID (Código Internacional de Doenças). É importante discutir em que contexto a OMS realizou essa adequação.

Durante a década de 80, com a veiculação da AIDS como doença de gays, a discriminação contra LGBT’s se intensificou. A manchete do antigo Jornal do Brasil, em junho de 1983 dizia: “Brasil já tem dois pacientes com câncer-gay”, noticiando os primeiros casos de AIDS constatados no Brasil. Assim, a homossexualidade foi associada à doença sem que fosse necessário, sob explicações técnicas absurdas e subjetivas, patologizar os LGBT’s.

Se a homossexualidade não era mais doença, agora os gays eram doentes. É neste cenário que a OMS descarta a homossexualidade em si, como doença. Portanto, na saúde, não era um momento nada progressivo para o combate à discriminação e ao preconceito.

Além disso, as instituições oficiais que operam no capitalismo, incluindo a OMS, nunca estiveram a serviço de combater a homofobia, pelo contrário, legitimavam a crueldade.

É verdade que a homofobia só passou a ser considerada transtorno mental em 1968, quando o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, um manual americano que orienta a prática psiquiátrica) formalizou e descreveu a “doença”, mas antes disso, os saberes médicos, especialmente a antropologia criminal, já associavam a homossexualidade e as identidades trans à doenças e degenerações. Isso fez com que, por décadas, LGBT’s fossem internados em manicômios, lobotomizados, submetidos à castração química, torturas e prisões.

Se a OMS retirou a homossexualidade da lista de doenças em maio de 1990, no Brasil, só em 1999 é que o Conselho Federal de Psicologia definiu que a homossexualidade não constitui doença, distúrbio ou perversão, proibindo, portanto que os psicólogos utilizassem de seus valores e convicções morais ou religiosas para “tratar” as LGBT’s.

Apesar disso, não fosse o movimento tomar as ruas contra Marco Feliciano em 2013, a “cura gay” provavelmente teria sido aprovada, trazendo consigo um enorme retrocesso.

O movimento LGBT no Brasil, diante da mudança, exigiu que não se utilizasse mais a palavra “homossexualismo“, pois o sufixo “ismo“, faz referência à doença e portanto, o correto seria dizer “homossexualidade”.

O decreto de Lula
Em 19 de maio de 2010, chamada pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais), aconteceu em Brasília, a I Marcha Nacional contra a Homofobia, reunindo LGBT’s de vários cantos do país. O combate à violência contra as LGBT’s era o tema de maior visibilidade na marcha. O movimento estava vivendo uma reorganização em torno da luta pela aprovação do PLC 122 que criminalizaria a LGBTfobia. Tanto era assim, que centenas de cruzes foram fincadas em frente ao Congresso Nacional, lembrando as LGBT’s assassinadas no ano anterior.

O movimento exigia do Governo Lula que alguma iniciativa fosse tomada, já que o programa Brasil sem Homofobia (que nunca saiu do papel), era a única atitude do governo em nome do combate à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.

Respondendo ao movimento, Lula nos presenteou com uma data, como se isso bastasse para mudar nossas vidas. Apenas uma data, como se o movimento precisasse de um decreto para lutar e se organizar, ou como se não tivéssemos nenhuma data e nenhuma exigência concreta.

A criminalização da LGBTfobia foi arquivada e nenhum direito foi conquistado, senão a União Civil, que veio à revelia do governo, pelas mão do STF. De lá para cá, o número de assassinatos motivados por LGBTfobia quase dobrou.

Despatologização da identidade trans já!
Apesar de a homossexualidade ter sido retirada do CID (Código Internacional de Doenças), o CID-10 mantém a transexualidade como uma patologia. O CID 10 mantém: F64 (Transtornos da identidade sexual); F64.0 (Transexualismo); F64.1 (Travestismo bivalente); F64.2 (Transtorno de identidade sexual na infância); 64.8 (Outros transtornos da identidade sexual); F64.9 (Transtorno não especificado da identidade sexual). Ou seja, as travestis e pessoas transexuais seguem sendo consideradas doentes.

Para ter acesso à transição, realizar cirurgias e tratamento hormonal, é necessário, ainda hoje, que as pessoas trans passem por tratamento psicológico e psiquiátrico e consigam laudo médico de que são doentes e apresentam “transtorno de identidade sexual”. Sem que a medicina legitime a disforia de gênero não é possível que uma pessoa trans tenha acesso, pelo SUS, ao acompanhamento que atenda às necessidades da sua saúde.

Também para conseguir o nome social, são exigidos laudos e comprovações de que a transição tenha ocorrido há tempo considerável.

Há toda uma burocracia e o envolvimento de instituições do capitalismo que obstacularizam o acesso a uma vida digna, como ter o direito ao próprio nome e a saúde e isso precisa ser denunciado.

28 de junho: Dia Internacional do Orgulho LGBT
Em 1969, em Nova Iorque, cansados das batidas policiais nos bares, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais rebelaram-se enfrentando abertamente as forças policiais que constantemente os perseguiam, extorquiam e encarceravam. O episódio ficou conhecido como a Revolta de Stonewall, pois era esse o nome do bar que foi invadido pela polícia americana. Foram 6 dias de confronto entre LGBT’s e a polícia, envolvendo centenas de pessoas.

Depois da revolta, os LGBT’s se organizaram e depois de um ano, fizeram a primeira Parada do Orgulho LGBT, na qual resolveram mostrar que estavam dispostos a mudar as coisas. Antes da Parada, a homossexualidade era considerada crime e doença. Eram negados vários direitos aos LGBT’s e havia muita discriminação. Houve uma série de direitos conquistados e tais iniciativas inspiraram os LGBT’s no mundo todo, encorajando-os a saírem dos guetos e armários e mostrar que não tinham vergonha de serem o que são e a sair da defensiva.

O Dia do Orgulho LGBT não foi uma data oferecida pelo governo ou por qualquer instituição do capitalismo. Foi um marco e uma lição para o movimento, de rebeldia, de luta e de independência dos governos e empresas, mas de aliança com outros setores oprimidos e com a classe trabalhadora. Revisitar essa história nos mostra que nossos direitos foram conquistados com muita luta.

Para combater a LGBTfobia, a nossa luta é todo dia!
Como se não bastasse a apropriação das Paradas pelo capitalismo que mercantilizou o movimento, esvaziando-o de conteúdo político e colocando o Dia do Orgulho LGBT como um dia de celebrar com os governos e patrocinadores uma igualdade hipócrita, que não existe nos demais 364 dias do ano, querem apagar nossa história de luta.

Independente disso, vamos tomar cada data do movimento como uma data de luta, não porque houve decreto, mas porque avançar na conquista dos nossos direitos é necessário e urgente. Em cada data de luta e em cada dia do ano, vamos resgatar o espírito de coragem, independência e rebeldia de Stonewall e exigir mudanças concretas, junto aos nossos aliados, da classe trabalhadora e sem patrões e sem governos.

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