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Filme protagonizado por Regina Casé mostra o despertar da dignidade negada à classe trabalhadora

 

Morumbi, zona nobre de São Paulo. Val (Regina Casé) é uma pernambucana que, há mais de uma década, trabalha como empregada doméstica na casa de uma família de classe média alta. Ela deixou a filha Jéssica (Camila Márdila) para arrumar um emprego que permitisse enviar dinheiro para criar a menina no Nordeste. Val mora na casa dos patrões Bárbara (Karine Teles) e José Carlos (Lourenço Mutarelli). É ela quem cria o filho do casal, Fabinho (Michel Joelsas), com quem desenvolve uma relação maternal. Val, a empregada, é tratada como membro da família. Mas essa é apenas a aparência rezada pelo senso comum.

O filme “Que horas ela volta?”, da diretora Anna Muylaert, é, antes de tudo, um filme sobre ideologia. Estamos falando aqui de ideologia como um conjunto de falsas ideias que servem para legitimar as ações de determinado grupo. No caso, o filme de Muylaert é uma crítica contundente à relação de desigualdade entre empregadas e patrões que não servem sequer o próprio refrigerante.

Val é uma mulher resignada e agradecida por morar num quartinho minúsculo nos fundos da mansão enquanto limpa, todos os dias, os confortáveis quartos da família. Ela aceita como natural a ideia de viver em condições de servidão. Aceita e obedece a uma condição de ser inferior.

Toda essa falsa ideia de naturalidade começa a desabar quando a filha de Val chega a São Paulo para prestar vestibular. Para a garota, o natural é ser tratada como gente igual a qualquer outro membro daquela família. Não hesita em aceitar o quarto de hóspedes em vez de dividir com a mãe o cubículo em que a mesma dorme passando calor e sofrendo com os pernilongos todas as noites.

A repressão da mãe, que chama Jéssica a ocupar seu lugar social de filha da empregada, estabelece um conflito entre as duas. Jéssica é o ponto de desequilíbrio que vai conduzir o espectador à percepção de que não existe conciliação possível entre empregadas e patrões. A situação das trabalhadoras é sempre humilhante e desigual para pior. E isso não tem nada de natural: é algo historicamente construído para manter uma sociedade que sobrevive da diferença entre classes sociais.

A crítica se apresenta em revezamento entre detalhes sutis e situações explícitas de humilhação. Vai desde a aparição de Val usando camisetas velhas das viagens internacionais dos patrões até a expulsão de Jéssica da casa.

É interessante ressaltar que o filme surge num momento em que o governo apresenta como uma de suas peças de vitrine a conquista de direitos trabalhistas para empregadas domésticas. Porém a narrativa mostra que apenas se corrigiu uma aberração – o fato de as empregadas não terem os mesmos direitos que outros trabalhadores – e não se acabou com a segregação entre empregados e patrões. O drama de Val se apresenta como uma história que se repete, o que vai ser demonstrado explicitamente ao longo do filme.

Reconhecimento: filme premiado em festival
Tecnicamente, o filme não apresenta nada de extraordinário. Suas merecidas premiações e, agora, a indicação para representar o Brasil no Oscar, se devem mais ao próprio enredo e à forma simples como é desenvolvido um tema que parece tão banal, mas que é tão complexo na hora de desmistificar certos padrões. Um aspecto também marcante é que a história é atravessada pelas relações humanas sob uma ótica bastante sensível.

A narrativa é bastante linear, não há grandes imprevistos, e o roteiro é, muitas vezes, caricatural. Um caminho arriscado escolhido pela diretora que poderia ter transformado o filme num desastre. No entanto, ela conseguiu ser genial justamente por esses elementos. Alcançou fama internacional e fez de “Que horas ela volta?” um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional.

As atuações quase perfeitas de Regina Casé e Camila Márdila são outros destaques da obra. As duas receberam o Prêmio Especial do Júri na categoria de interpretação de cinema mundial no Festival de Sundance. “Que horas ela volta?” também foi selecionado para o Festival de Berlim 2015.

Opressão: prêmio de melhores machistas
Num debate em Recife, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, após exibição do filme, os cineastas Lírio Ferreira e Cláudio Assis foram atores de cenas de machismo e grosserias. Bêbados, interrompiam o debate o tempo todo. Assis chamou Regina Casé de gorda e o maquiador de bichona. O comportamento dos dois causou revolta na plateia.

Anna Muylaert desabafou: “meu filme está fazendo sucesso lá fora, está nos Estados Unidos. É uma posição que só homem daqui até hoje teve. É um clube exclusivamente masculino. Tem todo um código que até hoje eu não conhecia e estou conhecendo agora”. Muylaret ainda soltou uma frase entalada na garganta de todas as mulheres: “A mulher tem dificuldade de subir no palco, e o homem, de descer dele”.

Em fato inédito, a fundação puniu Ferreira e Assis. Em nota, a instituição declarou “que não permitirá qualquer evento envolvendo os dois realizadores, e suas respectivas produções, em qualquer espaço da Fundaj”. A punição vale por um ano.

Publicado originalmente no jornal Opinião Socialista Nº 505

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